O sangue tem um papel muito importante em "Até o Último Homem", o primeiro filme dirigido por Mel Gibson em dez anos. Quando Desmond Doss (Andrew Garfield) conhece a mulher que vai ser sua futura esposa, ele está coberto do sangue de um rapaz que havia sofrido um acidente. Ela é enfermeira e ele se apaixona imediatamente; para ficar um pouco mais de tempo com ela, diz que veio doar sangue. No primeiro encontro dos dois, no cinema, ele pergunta qual a diferença entre uma veia e uma artéria.
Mel Gibson, super astro de filmes de ação dos anos 1980 ("Mad Max", "Máquina Mortífera") e diretor vencedor do Oscar nos anos 1990 ("Coração Valente") ficou na "geladeira" em Hollywood por vários anos por conta de declarações racistas e anti semitas. O antigo galã de filmes de ação revelou um lado religioso até então desconhecido no blockbuster "A Paixão de Cristo" (2004) em que a morte de Jesus foi mostrada da forma mais sangrenta da história do cinema. Em 2006, lá estava o sangue presente em abundância nos sacrifícios humanos de "Apocalypto". Gibson retorna como grande diretor em um belo filme de guerra, naturalmente coberto de sangue, que conta a história real de Desmond Doss (Garfield), um Adventista do Sétimo Dia que, na 2ª Guerra Mundial, se recusou a tocar em armas. É o tema perfeito para o retorno de Mel Gibson, um filme que mistura religião, sacrifício e muita, muita violência.
Desde "O Resgate do Soldado Ryan" (Steven Spielberg, 1998) que a guerra não era mostrada de forma tão gráfica. Ao contrário do filme de Spielberg, Gibson não mergulha imediatamente na carnificina. O filme passa um bom tempo mostrando a vida de Doss antes da guerra, na Virgínia, em que as belas paisagens campestres contrastavam com a violência doméstica causada pelo pai bêbado (Hugo Weaving, em boa interpretação). Há também um bom período passado no treinamento no quartel e na luta ético/jurídica que Desmond enfrentou por causa de sua decisão de não só se recusar a matar, mas em sequer tocar em uma arma. Um bom grupo de coadjuvantes (liderado por Vince Vaughn e Sam Worthington) interpreta os companheiros de farda de Desmond e, a princípio, concordamos com eles que a atitude de Desmond parece uma maluquice. O bom roteiro e principalmente a interpretação de Andrew Garfield, porem, acabam por convencer a todo mundo que talvez exista lugar no campo de batalha para alguém que, ao invés de matar, quer salvar vidas (Desmond havia se alistado como médico, embora não fique muito claro o nível de conhecimento exigido para o trabalho, já que o filme o mostra como um auto-didata esforçado).
A carnificina começa quando os soldados desembarcam em Okinawa, Japão, e enfrentam um inimigo violento e obstinado. Gibson não desvia a câmera ao mostrar centenas de soldados sendo baleados, mutilados, atravessados por baionetas ou explodidos por granadas. Há um bocado de cenas mostrando vísceras e membros humanos espalhados pelo campo de batalha. Curiosamente, a origem sulista e o modo simples de Desmond Doss me lembrou de Forrest Gump. A sequência passada na Guerra do Vietnam, quando Gump volta continuamente para o campo de batalha para buscar companheiros feridos, aliás, parece uma sinopse do terceiro ato de "Até o Último Homem". A diferença é que Gump era um "idiota" que agia (ou melhor, reagia) ao mundo de forma inocente e sem conhecer as consequências de seus atos, enquanto que Doss sabe o inferno em que está se metendo cada vez que retorna para buscar mais um ferido.
"Até o Último Homem" foi indicado a seis Oscars, incluindo "Melhor Filme", "Melhor Diretor" (Gibson) e "Melhor Ator" (Garfield).
João Solimeo