Atenção, esta resenha contém SPOILERS. E se você acha estranho um aviso destes precedendo um texto sobre um filme bíblico, você tem razão, mas isto só serve para mostrar o quanto o novo filme de Darren Aronofsky é...singular. Todo mundo conhece, em linhas gerais, a "trama" de Noé. Desconsolado com a própria criação, Deus resolve matar todos os seus filhos em uma grande inundação que assolou a Terra do Velho Testamento. Apenas a família de Noé e um casal de cada animal do planeta seriam salvos pela construção de um gigantesco navio, ou Arca, que sobreviveria à tempestade. Após o dilúvio, Noé e família seriam responsáveis pelo repovoamento do planeta. Tudo muito bem.
Como contar esta história para espectadores de cinema do século 21? "Noé" poderia ter sido um filme bíblico tradicional, heterodoxo e (provavelmente), muito rentável financeiramente. Ao invés disso, os produtores resolveram ousar já na contratação do diretor Darren Aronofsky, que tem uma das carreiras mais estranhas de Hollywood. Ele começou com filmes independentes como "Pi" (1998), fez um pesado filme sobre drogas, "Réquiem para um Sonho" (2000), afundou nas bilheterias com "Fonte da Vida" (2006), realizou um "filme de luta" tradicional, "O Lutador" (2008) e alcançou Hollywood e o povão em "Cisne Negro" (2010).
Aronofsky tem um sentido visual apurado e "Noé", sem dúvida, é interessante de se ver. O planeta habitado por Noé (Russell Crowe, de "Os Miseráveis") e sua família existe em um tempo dão distante que o Universo ainda era novo, e estrelas podiam ser vistas durante o dia. Uma narração conta a história da queda do Homem após comer o "fruto proibido" no Jardim do Éden, seguida da expulsão do paraíso e o assassinato de Abel por Caim (filhos de Adão e Eva). Este então teria se separado da família e criado uma legião de seguidores frutos do pecado e da ambição. Como é que Caim conseguiu procriar sem que houvesse nenhuma outra mulher no planeta além da mãe, Eva, é algo que o filme (e a Bíblia), deixam de explicar. Mas esta é uma daquelas "falhas de roteiro" que já duram milênios e não sou eu que vou conseguir explicar. Mas Aronofsky parece querer fazer um filme "plausível", então a pergunta é válida. Noé sonha com o dilúvio e adivinha as intenções do "Criador" em destruir o planeta. Após consultar o avô, Matusalém (Anthony Hopkins, risivelmente parecido com o "Mestre dos Magos", da "Caverna do Dragão"), Noé começa a construção da Arca que salvaria os animais durante o "reboot" promovido pelo "Criador". (leia mais abaixo)
Há um detalhe que deixei para o final por ser, em minha opinião, a decisão criativa mais estranha (e errada) do filme. Noé é auxiliado tanto na construção da Arca quanto na sua proteção por criaturas chamadas de "Guardiões", que seriam anjos caídos na Terra e transformados em gigantes de pedra. Por mais fantasioso que o filme seja, fica difícil levá-lo a sério quando estes "Transformers de pedra" aparecem. Até a voz deles lembra os robôs dos (péssimos) filmes de Michael Bay. O que Aronofsky estava pensando? Ok, os "Guardiões" podem "explicar" como a Arca poderia ser construído; da mesma forma, quando os milhares de "filhos de Caim" (liderados por Ray Winstone) tentam invadir a Arca, os "Guardiões" têm a função de impedi-los. Tudo isso, no entanto, poderia ser explicado de outra forma, como o "poder de Deus", raios caindo do céu ou coisa parecida. Mas fica difícil segurar o riso ao ver "Samyasa" (até o nome parece de um robô japonês), um dos "Guardiões", pisando e despedaçando centenas de pobres coitados tentando chegar à Arca durante o dilúvio.
Há vários bons momentos (principalmente quando os "Guardiões" não estão visíveis), o elenco é sólido e Russell Crowe é imponente o suficiente para personificar um dos ancestrais míticos da Humanidade. As cenas que mostram os animais chegando à Arca são muito bem feitas (apesar do exagero nos efeitos digitais). E há uma maravilhosa sequência em que Russell Crowe conta aos filhos a história do "Genesis", ilustrada com visual deslumbrante, que merecia estar em um filme melhor.
Câmera Escura
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