quarta-feira, 5 de março de 2014

Vidas ao Vento

Um dia, talvez, o Ocidente vai entender a diferença entre "animação" e "desenho animado". O termo geralmente traz embutida e ideia de um produto infantil, feito para distrair as crianças enquanto os adultos têm um pouco de paz. Não há nada de "errado" em se divertir com um bom desenho animado, com as diabruras do "Pica Pau", "Tom & Jerry", ou se maravilhar com histórias da Disney/Pixar. Uma animação, no entanto, pode ser chocante como "Pink Floyd - The Wall", ou fazer pensar como "Valsa com Bashir".

E há Hayao Miyazaki, lenda viva da animação japonesa, que comemorou 73 anos e anunciou (mais uma vez), sua aposentadoria após lançar "Vidas ao Vento" (Kaze Tachinu) ano passado. O fato de "Vidas ao Vento" ser feito em animação é, ao mesmo tempo, fundamental e um "detalhe". "Detalhe" porque ele tem a estrutura de um filme feito com atores, baseado levemente na vida real do designer de aviões Jiro Horikoshi. Ao mesmo tempo, a técnica da animação permite que Miyazaki construa planos fantásticos de uma beleza irretocável, mesmo em sequências trágicas como o devastador terremoto de 1923, que reduziu  a cidade de Tokyo (e arredores) a cinzas. Apesar deste ser o filme mais realista de Miyazaki, há lugar para vários voos da sua imaginação fértil, principalmente nas sequências de sonhos de jovem Jiro, um garoto míope que sonhava em ser piloto de aviões. É fácil perceber a ligação entre Jiro e o próprio Miyazaki. Os dois sonhavam em voar e em "construir coisas lindas", dedicando suas vidas a realizar seus sonhos a partir de linhas traçadas no papel. No filme, Jiro tem sonhos constantes com um designer italiano chamado Caproni, que lhe diz que aviões não deveriam ser usados em guerras, mas sim para serem máquinas maravilhosas que transportam pessoas. (leia mais abaixo)


Como na vida real, há várias contradições no personagem de Jiro Horikoshi e no filme de Hayao Miyazaki. A animação causou certa controvérsia por ter como herói um homem que, no fundo, construiu armas mortais, os famosos caças "Zero" japoneses, que causaram destruição e mortes na 2ª Guerra Mundial. Jiro sabia que suas "máquinas de sonhos" seriam usados para matar? Claro que sim, mas não é tão simples assim. Jiro era uma pessoa real, com sonhos e necessidades como qualquer um, que viveu em uma época extremamente conturbada da Humanidade, em um país em decadência que tentava se colocar em pé. Há várias cenas do filme em que vemos como a crise econômica está desolando o Japão, com centenas de desempregados vagando pelas linhas dos trens e multidões desesperadas tentando sacar dinheiro nos bancos em falência. Jiro e seus companheiros de trabalho na Mitsubishi eram homens práticos, dedicados à evolução das máquinas voadoras e, no fundo, um tanto espantados com a histeria militarista que tomava conta do Japão e da Alemanha, para onde Jiro é enviado para estudar os aviões da empresa Junkers. Há cenas em que Jiro e Honjo, seu colega de trabalho, ficam imaginando onde é que a Marinha pretende usar todos aqueles aviões que ele estão planejando construir. O próprio Miyazaki, em um comunicado, falou contra a atual onda militarista que estaria ocorrendo no Japão, com políticos tentando mudar a constituição e voltar a construir armas. E um olhar atento vai perceber como "Vidas ao Vento" é contrário à guerra, principalmente nas sequências finais.



Tecnicamente, o filme é um assombro. Hayao Miyazaki, além de roteirista, diretor e produtor, costuma desenhar pessoalmente várias das sequências animadas, com seu traço característico. Vale notar também o inventivo trabalho de som; quase todos os efeitos sonoros, dos motores dos aviões ao rugido do terremoto, foram feitos através de vozes humanas. A trilha sonora é do tradicional colaborador de Miyazaki, o ótimo Jou Hisaishi. É possível ver ecos e referências de vários trabalhos anteriores do mestre japonês, assumidamente fanático por máquinas voadoras. Há cenas que lembram "Nausicaa do Vale dos Ventos" (1984), "O Castelo no Céu" (1986) e "Porco Rosso" (1992). Alguns momentos são técnicos demais, como nas cenas em que vemos dezenas de jovens engenheiros vibrando por causa de um novo tipo de rebite usado nas asas, por exemplo. Estas cenas ficam bem longe da deliciosa fantasia de "Ponyo" (2008). Em meio a tudo isso, porém, há ainda espaço para uma delicada história de amor entre Jiro e Naoko, uma garota tuberculosa por quem ele é apaixonado. Workaholic convicto, porém, o relacionamento dos dois se resume às poucas oportunidades em que ele não está trabalhando. "Se houvesse uma competição para ver quem consegue usar usa régua de cálculo com uma mão só, eu ganharia", diz Jiro em uma cena tocante em que Naoko se recusa a soltar a mão do marido.

Se for mesmo o último trabalho de Hayao Miyazaki, será uma bela despedida. É um filme longo, contraditório e político que consegue ser, ao mesmo tempo, mágico. É um feito e tanto.

Câmera Escura

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