terça-feira, 30 de dezembro de 2014

O Abutre

Lou Bloon (Jake Gyllenhaal) é um trambiqueiro que vive de pequenos furtos em Los Angeles. Uma noite ele vê uma equipe de cinegrafistas gravando um acidente e tem uma inspiração. Com o dinheiro de uma bicicleta roubada ele compra um rádio de polícia, uma câmera de vídeo e passa as noites escutando os chamados de emergência, em busca de alguma ocorrência.

Uma de suas primeiras filmagens, um sangrento homicídio, chama a atenção de Nina (Rene Russo, por onde andava ela?) a editora de uma pequena rede de TV de Los Angeles. Ela é obcecada por audiência, como toda jornalista, mas sua falta de ética encontra eco nas imagens cruas de Lou. "Me traga mais material como este", ela diz ao rapaz.

Jake Gyllenhaal já provou ser bom ator em filmes como "Zodíaco", de David Fincher, e "O Homem Duplicado", de Denis Villeneuve, mas ele está irreconhecível na pele de Lou Bloon, desaparecendo em um personagem completamente sem escrúpulos. Lou não conhece limites éticos; seu objetivo é um só: chegar primeiro à ocorrência e conseguir as imagens mais chocantes. Com uma voz afetada, ele recita sem parar regras de negócios e frases de efeito que aprendeu online e, surpreendentemente, consegue até contratar um estagiário, Rick (Riz Ahmed); com um GPS na mão, Rick orienta Lou pelas ruas de Los Angeles, tentando encontrar o melhor caminho até uma ocorrência. As cenas noturnas que mostram Lou cruzando as ruas em um carro vermelho, aliás, lembram muito o visual do filme "Drive", de Nicolas Winding Refn. (leia mais abaixo)


Em um mundo cada vez mais interessado na imagem, qual o papel do jornalismo? Há uma ótima cena em que Lou, em um jantar, diz a Nina como ele é importante para a emissora; segundo ele, apenas uma pequena parte do jornal é dedicado às notícias de política e do mundo. O resto é preenchido com material sensacionalista sobre crimes e problemas da cidade. Observe como a cena começa como o que parece ser um encontro romântico (e até ingênuo) e termina com Lou chantageando Nina para que ela durma com ele em troca de imagens para seu telejornal.

"O Abutre" é o primeiro longa-metragem dirigido pelo roteirista Dan Gilroy (de "Gigantes de Aço" e "O Legado Bourne"). Ele é irmão de Tony Gilroy, diretor de "Conduta de Risco" e roteirista da trilogia "Bourne". O filme, quase todo noturno, é muito bem fotografado por Robert Elswit, colaborador habitual de Paul Thomas Anderson ("Magnólia", "Sangue Negro"). Há certo exagero (esperemos que sim) na capacidade maquiavélica de Lou em manipular as informações e até em criar situações que rendem boas imagens, mas "O Abutre" funciona muito bem como um alerta para a baixa qualidade do jornalismo atual. O filme ganhou muito elogios entre os críticos e é um dos candidatos sérios para o próximo Oscar.

João Solimeo

The Rover - A Caçada (Netflix)

Ele parece constantemente angustiado. Seco. Fechado. Um morto ambulante. Os olhos fundos e a barba por fazer completam o retrato de Eric (Guy Pearce), um homem vagando pela Austrália em um mundo pós-apocalíptico. "Já vi este filme antes", você pode pensar. "A Estrada" (John Hillcoat, 2009); "O Livro de Eli" (dos irmãos Hughes, 2010); "Mad Max" (George Miller, 1979); estes filmes são, de fato, invocados por "The Rover", mas há um desespero seco e cru neste filme que o faz ainda mais pungente. Nada parece ter sentido ou propósito, vamos todos morrer um dia.

Escrito e dirigido por David Michôd, "The Rover" ainda pode ser lembrado por apresentar uma bela interpretação de Robert Pattinson, bem distante de seu trabalho em sagas adolescentes de vampiros. O filme, porém, pertence a Guy Pearce. Ele é um homem sem nome que, no fantástico começo do filme, tem o carro roubado por três homens armados. Pearce sobe em uma van e sai no encalço deles, determinado a recuperar seu veículo. Por que? Não importa, na verdade. Pouco se sabe sobre o que aconteceu ao resto do mundo, mas claramente a civilização como a conhecemos acabou. Há apenas vastas paisagens desérticas habitadas por farrapos de homens e mulheres.


Pearce acaba cruzando com Rey (Robert Pattinson), um rapaz que foi abandonado para morrer pelo irmão depois de um tiroteio. Pattinson, como disse, está muito bem como um homem que parece uma criança grande. Ele não é muito inteligente e tem uma carência tão grande que acaba formando um laço com o personagem de Guy Pearce, que só quer encontrar seu carro e, provavelmente, matar o irmão de Pattinson. Vemos apenas relances do que sobrou de alguma civilização, como um trem que cruza o deserto, vozes chinesas tocando na rádio do carro e alguns soldados em uma missão inútil.

Destaque para a brilhante direção de fotografia de Natasha Braier. Nesta era digital, "The Rover" foi filmado em bom e velho filme Kodak, com imagem cristalina sob o sol escaldante do sul da Austrália. Repare também no ótimo contraste nas cenas noturnas. A trilha sonora dissonante de Antony Partos também é dos pontos altos do filme. "The Rover", pesado, cruel e marcante, está disponível pela Netflix.

João Solimeo

quarta-feira, 24 de dezembro de 2014

Operação Big Hero

Parece que você está assistindo a dois filmes diferentes. "Operação Big Hero" (Big Hero 6) é, ao mesmo tempo, um terno filme sobre a amizade entre um garoto e um robô, por um lado, e um blockbuster de super-herói da Marvel, por outro.

Explica-se. A Disney comprou a Marvel há alguns anos e, precisando de conteúdo, pediu a seus executivos que vasculhassem o vasto arquivo da fábrica de heróis por alguma coisa que pudesse se transformar em um produto Disney. Encontraram "Big Hero 6", uma HQ produzida no final dos anos 1990 que só era conhecida pelos aficionados pelo gênero, o que dava carta branca para que a história original (que era adulta) pudesse ser mudada e adaptada para a sensibilidade dos espectadores dos estúdios Disney.

O resultado é um filme vibrante, vivo e colorido, com fartas doses de influência oriental. A história se passa na cidade de San Fransokyo, uma interessante mistura da cidade costeira americana com a capital do Japão. A famosa ponte Golden Gate, por exemplo, tem formas orientais, os neons estão escritos em japonês e até os personagens têm nomes japoneses, como Hiro Hamada, um garoto prodígio de 13 anos que gosta de competir em lutas clandestinas de robôs.

Um dia seu irmão mais velho, Tadashi, o leva até uma universidade que é o paraíso dos nerds, em que adolescentes de várias idades desenvolvem bicicletas flutuantes e outras coisas do gênero. O projeto de Tadashi é um robô médico chamado Baymax, que se parece com um marshmallow gigante. Tudo no robô inspira calma e tranquilidade e a função dele é tratar da saúde das pessoas. (leia mais abaixo)


Após um prólogo relativamente longo uma tragédia se abate sobre Hiro, que perde o irmão em um incêndio e herda dele o robô de fala tranquila. A relação entre os dois é muito interessante e tem influências claras de histórias como "E.T.", "Meu amigo Totorô", "Gigante de Ferro", "Como treinar seu dragão", entre outras. O filme provavelmente poderia ter sido apenas sobre isto, mas a partir de certo ponto o roteiro parece se lembrar que é também uma aventura da Marvel e o tom do filme muda radicalmente para a ação desenfreada.

O design japonês me lembrou muito Osamu Tezuka, criador de Astro Boy e dezenas de outros personagens de mangás e animês. "Operação Big Hero" tem um pouco de tudo e certamente vai agradar a diversas plateias, de crianças a adultos. Pessoalmente preferiria que o filme tivesse ficado mais no lado dos sentimentos e menos no lado aventura da Marvel, mas é questão de gosto (e de mercado). Também acho que teria sido melhor, do ponto de vista do estúdio, lançá-lo como um produto da Pixar (que já fez o ótimo "Os Incríveis") do que interromper a tradição dos "filmes de princesas" da Disney. É um bom filme, com visual impressionante (San Fransokyo parece viva e pulsante como uma cidade de verdade) e bons personagens. Sem dúvida haverá continuações em breve.

João Solimeo

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

O Homem Mais Procurado (Netflix)

Este é último filme a ter o grande Philip Seymour Hoffman no papel principal. Hoffman, infelizmente, morreu de overdose no início deste ano, deixando para trás uma carreira brilhante em papéis variados. Em "O Homem Mais Procurado" ele é Günther Bachmann, o chefe de um grupo de espionagem baseado em Hamburgo, Alemanha. O mundo vive a paranoia pós 11 de Setembro e as autoridades alemãs não querem que nenhum atentado atinja a cidade portuária.

Baseado em um livro de John Le Carré, o roteiro de Andrew Bovell é complicado na medida certa, com vários personagens e sem a preocupação de explicar tudo didaticamente ao espectador, o que é ótimo. Este é daqueles filmes que requerem atenção. Considerem o personagem de Issa Karpov (Grigoriy Dobrygin), um imigrante ilegal que chega a Hamburgo; filho de chechenos e russos, é muçulmano e atrai a atenção do grupo anti-terrorismo de Günther. Karpov alega que tem uma fortuna a receber da herança do pai militar e recebe a ajuda de uma jovem advogada especializada em refugiados, Annabel (Rachel McAdams). Ela encaminha Karpov a um banqueiro interpretado por Willem Dafoe. Quem é Karpov, afinal? É apenas um refugiado, como alega, ou é um terrorista disfarçado, arrecadando dinheiro para um grande atentado? (leia mais abaixo)


O filme é dirigido com muita competência por Anton Corbijn, que começou a carreira como um celebrado fotógrafo e diretor de videoclips para bandas como Joy Division e U2. No cinema, já dirigiu bons filmes como "Control", que contava a biografia do líder do Joy Division, Ian Curtis e "Um Homem Misterioso", com George Clooney. Corbijn conduz "O Homem Mais Procurado" sem pressa e é metódico em detalhar tanto os procedimentos policiais quanto o estado de espírito dos personagens.

Hoffman se despede do cinema com seu habitual brilhantismo. Günther é um homem muito inteligente, mas tem que lidar tanto com o combate ao terrorismo quanto com as politicagens internas do serviço de inteligência alemão. O elenco, que ainda conta com a ótima Robin Wright (de "House of Cards"), é tão bom que se dá ao luxo de ter um ator como Daniel Brühl ("Rush") como mero coadjuvante. "O Homem Mais Procurado" está disponível na Netflix.

João Solimeo
Câmera Escura

O Hobbit: A Batalha dos Cinco Exércitos

ATENÇÃO: Spoilers

O terceiro e último capítulo da trilogia "O Hobbit" traz um Peter Jackson cansado e, aparentemente, apressado em terminar o trabalho iniciado em "Uma Jornada Inesperada" (2012). "A Batalha dos Cinco Exércitos" começa exatamente onde "A Desolação de Smaug" (2013) terminou, com o ataque do gigantesco dragão Smaug a Escaroth, povoado humano aos pés da "Montanha Solitária". Smaug é derrotado rapidamente pelo arqueiro Bard (Luke Evans), que consegue atingir o único ponto fraco na armadura da gigantesca criatura, terminando também com a melhor sequência de todo filme. Como ainda estamos no seu início, imagine o tamanho do problema que Jackson e seus roteiristas tinham nas mãos para transformar as  menos de 100 páginas finais da obra de J.R.R. Tolkien em um filme de mais de duas horas e vinte de duração.

"A Batalha dos Cinco Exércitos" é tão frio e burocrático quanto os antecessores foram longos e exagerados. Com Smaug fora de cena, o roteiro fica sem nenhum grande dilema a ser resolvido, a não ser que você se preocupe com o destino de personagens sem muito brilho como Thorin Escudo de Carvalho (Richard Armitage) ou acredite no romance (inexistente no livro) platônico entre o anão Kili (Aidan Turner) e a elfa Tauriel (Evangeline Lilly). Não há um Anel do Poder a ser destruído, como no final da trilogia original de Tolkien, ou personagens realmente interessantes como Aragorn (Vigo Mortensen), Frodo (Elijah Wood) ou Gollun (Andy Serkis). Os únicos personagens ainda dignos de nota são Bilbo (interpretado muito bem por Martin Freeman) e Galdalf (Ian McKellen), mas os dois estão mais para espectadores do que para protagonistas neste capítulo final.

Assim, investe-se em uma exploração psicológica da "doença do ouro" que acometeu Thorin, obcecado em encontrar a "Pedra Arken" e em defender montanhas de ouro do ataque de vários exércitos compostos por humanos, elfos, orcs e outras criaturas, todas marchando em uma grande paisagem em computação gráfica. Armitage, como Thorin, se vê obrigado a fazer expressões faciais de "louco", além de um momento bastante vergonhoso em que ele tem a voz modificada para se parecer com o dragão Smaug, acompanhada de movimentos corporais e tudo. (leia mais abaixo)


Falando em momento vergonhoso (e em desperdiçar um vilão cedo demais), Galadriel (Cate Blanchett), Enrold (Hugo Weaving) e Saruman (Christopher Lee) têm uma cena apressada em que enfrentam Sauron, que é banido por Blanchett em uma exagerada cena de efeitos especiais (com direito a Galadriel transformada em uma espécie de entidade com voz distorcida por computador, reprisando cena da trilogia original). Nenhum dos personagens aparece novamente e fica no ar a pergunta: se Gandalf testemunhou o retorno de Sauron, por que é que ele parece ignorante deste fato no início de "O Senhor dos Anéis"?

O resto do filme, como sugere o título, não passa de uma longa série de cenas de batalha. Ao contrário dos filmes anteriores, ao menos neste a violência tem consequências sérias, resultando até na morte de alguns personagens importantes. O filme (e a Trilogia) terminam, porém, sem muita emoção ou brilho.

Uma questão técnica: Peter Jackson rodou os filmes da trilogia "O Hobbit" em um novo sistema chamado HFR (High Frame Rate) que grava a 48 quadros por segundo (ao contrário dos 24 quadros por segundo tradicionais do cinema). A técnica daria um visual mais "fluido" à imagem, mais "realista", lembrando videogames. A cópia que assisti estava em 3D e, aparentemente, com o framerate de 48 quadros por segundo, o que me causou enorme estranheza. Não parece cinema, parece TV de alta definição. A imagem, mais clara e nítida, se parece mais com o que estamos acostumados a ver em documentários, novelas e vídeos de making ofs do que de filmes de cinema. Foi o primeiro filme desta trilogia que vi com este sistema, mas não estou só em minha estranheza com a imagem, como mostra este artigo de 2012. Se puder escolher, eu recomendaria ver o filme no sistema normal, e não em HFR.

João Solimeo
Câmera Escura

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

25th Hour (A Última Noite) - Netflix

Se a vida como você a conhece fosse acabar amanhã, o que você faria? Monty Brogan (Edward Norton, de "O Grande Hotel Budapeste", sempre excelente) tem uma bela namorada, com o nome exótico de Naturelle Riviera (Rosario Dawson, "Sete Vidas"), tem dois amigos fiéis de longa data, Jake (Philip Seymour Hoffman) e Frank (Barry Pepper) e um pai amoroso (Brian Cox).

O problema é que Monty, um ex-traficante que tinha guardado no apartamento grande quantidade de dinheiro e entorpecentes, é visitado pela polícia uma noite. Eles encontram o material e Monty é condenado a sete anos de prisão. Ele ainda é jovem e, se sobreviver à prisão, ainda tem a vida pela frente, mas todos sabem que nada será como antes. Monty resolve passar sua última noite de liberdade farreando por Nova York com os amigos e com a namorada.

"25th Hour" (chamado no Brasil de "A Última Noite) é um filme feito pelo diretor americano Spike Lee em 2002 e está disponível agora no Brasil pela Netflix. O roteiro é baseado em um livro de David Benioff (um dos produtores de "Game of Thrones") e trata de amor, amizade, arrependimento e desconfiança. O filme foi feito pouco depois dos atentados às Torres Gêmeas de Nova York e Spike Lee usa a tragédia da cidade como pano de fundo para a tragédia pessoal de Monty. Os créditos iniciais se desenrolam sobre cenas dos destroços do World Trade Center, representado por fachos de luz. (leia mais abaixo)


Quem teria delatado Monty para a polícia? A culpa, muito provavelmente, é da namorada dele, mas por que ela teria feito isso? Seria ela uma simples interesseira? Como seus amigos estão lidando com a prisão dele? Barry Pepper, interpretando um corretor de Wall Street, mal consegue esconder a frustração com o amigo. Há uma longa cena, feita em um único plano, em que Pepper e Seymour Hoffman falam sobre a vida criminosa de Monty diante de uma janela que dá para os destroços do World Trade Center. "Eu o amo como amigo, mas ele é um traficante e merece ir para a cadeia", diz Frank. Hoffman interpreta um professor de literatura que é o protótipo do "virgem de 40 anos". Ele é incapaz de olhar diretamente nos olhos de outra pessoa e está fascinado com uma aluna de 16 anos que frequenta suas aulas (interpretada por Anna Paquin, da série "X-Men").

O filme tem belíssima direção de fotografia de Rodrigo Pietro ("O Lobo de Wall Street", "Argo") e ótima edição de Barry Alexander Brown, colaborador habitual de Spike Lee. Há cortes muito interessantes no filme, que repetem a ação dos personagens de um plano para outro ou quebram propositalmente o eixo de ação, desorientando o espectador. A trilha sonora de Terence Blanchard, apesar de muito boa, poderia ser menos presente, sendo exagerada em alguns momentos.

Há uma sensação palpável de tensão que cresce conforme vai chegando a hora de Monty ir para a prisão. Será que ele vai suportar sete anos atrás das grades? A namorada deve esperar por ele? Os amigos voltarão a vê-lo? Seria melhor, talvez, dar um tiro na cabeça e terminar com tudo antes?

Brilhante trabalho de direção e interpretação, "25th Hour" não deve ser perdido.

João Solimeo

domingo, 30 de novembro de 2014

De Volta ao Jogo

"De Volta ao Jogo" é só clichês. Apesar disso, ou melhor, por causa disso, é um filme muito bom de se ver. Considere a sinopse: um assassino profissional chamado John Wick (Keanu Reeves, "Side by Side") havia se aposentado por causa do amor de uma mulher (Bridget Moynahan, vista apenas em flashbacks). Poucos dias depois dela morrer de uma doença, a casa de Wick é invadida por três membros da máfia russa. Eles não só roubam o Mustang 1969 de Wick como também matam seu cachorro. Pior: o cachorro havia sido um presente de despedida da esposa. Está armada a fórmula para um dos melhores filmes de vingança dos últimos anos.

Reeves está muito bem. Com inacreditáveis 50 anos, ele empresta ao personagem sua personalidade zen e várias das habilidades em artes marciais mostradas em filmes como "Matrix", há 15 anos. John Wick é puro profissionalismo. Em poucas horas ele descobre que quem roubou seu carro e matou seu cachorro foi Iosef Tarasov (Alfie Allen, da série "Game of Thrones"), filho do chefe da máfia russa, Viggo Tarasov (Michael Nyqvist, aquele tipo de vilão sofisticado que faz longos monólogos ao invés de simplesmente matar o inimigo). Há aqui outro clichê que remonta a filmes como "Duelo de Titãs" ("Last Train from Gun Hill", de John Sturges, 1959), em que a mulher de Kirk Douglas havia sido morta pelo filho de um antigo companheiro, interpretado por Anthony Quinn, e ele parte para a vingança. Alfie Allen também está muito bem, embora esteja praticamente reprisando Theon Greyjoy, seu personagem covarde e fraco de "Game of Thrones". (leia mais abaixo)


O que transforma a lista de clichês de "De Volta ao Jogo" em um bom filme? O elenco, que também conta com nomes como Willem Dafoe e John Legizamo, ajuda bastante. O filme brilha de verdade, porém, na ótima coreografia das cenas de tiroteio e luta, executadas como uma dança por Reeves e um exército de dublês (contei pelo menos cinquenta nos créditos). Há uma mistura de artes marciais e armas de fogo que lembra "Equilibrium", ficção-científica com Christian Bale de 2002. John Wick se move como um samurai; ao invés de ter uma katana nas mãos, empunha uma automática. E nestes tempos em que a maioria dos filmes americanos têm a classificação PG-13 (que significa violência disfarçada) é bom ver um filme feito diretamente para adultos. John Wick nunca dá apenas um tiro em seus opositores e geralmente finaliza com um tiro na cabeça. Há uma sequência passada em uma casa noturna em que os tiros parecem até pipocar em sincronia com a música.

"De Volta ao Jogo" é dirigido por dois ex-dublês de Hollywood, Chad Stahelski e David Leitch, o que explica a quantidade e precisão das cenas de ação. Filme macho das antigas (Steve McQueen estaria à vontade nele há 40 anos), o filme é diversão garantida.

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Cavalgada dos Proscritos (Netflix)

"Cavalgada dos Proscritos" (título moralista para "The Long Riders") é um filme de 1980 dirigido por Walter Hill (que faria sucesso com "48 Horas" em 1982). É um bom faroeste com uma sacada interessante de elenco: irmãos na vida real interpretam irmãos na ficção. David, Keith e Robert Carradine interpretam os irmãos Younger; James e Stacy Keach são Jesse James e Frank James; Dennis e Randy Quaid são os irmãos Miller; Christopher e Nicholas Guest são os irmãos Ford.

O filme trata da história do famoso bandido americano Jesse James (James Keach), que depois da Guerra de Secessão assaltou vários bancos e trens no estado do Missouri. A ferrovia contratou a famosa Agência de Detetives Pinkerton para caçar James e seu bando.

Os irmãos Keach, além de atuarem, também co-escreveram e co-produziram o filme, que tem bela fotografia em tons dourados feita por Ric Waite e trilha sonora de Ry Cooder. A história foi contada novamente em 2007 no longo e introspectivo "O Assassinato de Jesse James pelo covarde Robert Ford", de Andrew Dominik, estrelado por Brad Pitt. (leia mais abaixo)


A versão de Hill é mais crua e realista, no estilo dos anos 1970. Há uma espetacular sequência de tiroteio quando um roubo a banco não sai como se esperava, com ótima edição e uma quantidade inacreditável de tiros trocados pelos bandidos e os agentes da lei. O elenco é bom, embora o papel de Jesse James seja interpretado pelo ator mais fraco do grupo, James Keach (Stacy Keach, por outro lado, está ótimo). "Cavalgada dos Proscritos" está disponível no Brasil na Netflix.

João Solimeo

domingo, 9 de novembro de 2014

Interestelar

Um ótimo filme de ficção científica de uma hora e meia, no máximo duas horas, existe dentro de "Interestelar", o novo e ambicioso épico de Christopher Nolan. O problema é que, como em quase todo filme de Nolan, ele é longo demais, explicativo demais e chega ao público com longas três horas de duração.

Não me entenda mal, há muito que se elogiar em "Interestelar". O elenco é muito bom, encabeçado por Matthew McConaughey, ator que viveu um "renascimento" ultimamente na carreira, coroado com o Oscar de melhor ator por "Clube de Compras Dallas". O grande Michael Caine bate ponto novamente em um filme de Nolan (como fez na trilogia "Batman" e em "O Grande Truque") e há uma garota (Mackenzie Foy) que faz a filha de McConaughey, que quase rouba o filme. O visual é muito bom, capitaneado pelo diretor de fotografia Hoyte Van Hoytema (de "Ela"), que substituiu Wally Pfister, o habitual fotógrafo de Nolan (que foi dirigir outra ficção científica, o decepcionante "Trancendente").

Gostar ou não do filme vai depender muito do quanto o espectador gosta ou não do estilo exagerado de Christopher Nolan. Uma coisa, porém, é certa: "Interestelar" não é nenhum "2001 - Uma Odisséia no Espaço", filme que o próprio Nolan tem citado em entrevistas por aí. Não se trata de comparar Nolan com Kubrick. O caso é que falta muito em "Interestelar" o que sobra em "2001": silêncios. Nolan consegue fazer um filme de três horas de duração em que praticamente não há um respiro, um momento contemplativo sequer. Como faria bem ao filme ter uma sequência espacial sem que a música de Hans Zimmer não estivesse tocando a todo volume. Como faria bem ao filme ter uma sequência de mistério que não fosse explicada minuciosamente por algum personagem. De duas, uma; ou Nolan não confia em seu espetador ou acha que deve conduzi-lo pela mão, passo a passo, por cada sequência de seu filme.

Tanto assim que a melhor parte do filme é o início, situado em uma fazenda de milho cujo cenário e personagens lembram muito "Sinais", de M. Night Shyamalan. Assim como no filme do indo-americano, um viúvo mora em uma casa de fazenda com um casal de filhos e o sogro (no filme de Shyamalan, era um irmão). A Terra está passando por um período de grande fome; bilhões de pessoas já morreram e quase todos os sobreviventes são plantadores de milho, uma das últimas culturas que ainda crescem no planeta. Assim como em "Sinais", coisas inexplicáveis estão acontecendo na casa da família de Cooper (McConaughey), um ex-piloto e engenheiro. Sua filha Murph diz que um "fantasma" tem derrubado os livros da estante. Alguma coisa está atraindo para a casa as máquinas colheitadeiras robóticas e até mesmo um "drone" entra em pane perto da fazenda de Cooper. Em uma tempestade de areia, Cooper e a filha percebem sinais formados pelo pó no chão do quarto dela. São coordenadas de algum lugar misterioso. (leia mais abaixo)



Há nesta primeira parte um suspense e mistério que fazem falta no resto do filme. Cooper é recrutado pelo que restou da NASA para encontrar um planeta adequado a receber os últimos seres humanos do planeta. A Terra está condenada e a NASA descobriu que alguém colocou um "buraco de minhoca" ("wormhole", em inglês, basicamente um portal para outra parte da galáxia) nas proximidades de Saturno. A referência a "2001" é clara, já que o escritor Arthur C. Clarke também colocou seu "Monolito" próximo a Saturno em seu livro (Kubrick, no filme, mudou para Júpiter).

Cooper, em companhia de Anne Hathaway, Wes Bentley, David Gyasi e um robô chamado TARS partem para a aventura a bordo da espaçonave Endurance (que não foi feita em computação gráfica, mas com as boas e velhas miniaturas de antigamente). É então que, paradoxalmente, o filme perde força. O mistério e os bons dramas familiares são trocados por longas conversas sobre a Teoria da Relatividade, de Albert Einstein, e temas bem menos científicos, como uma teoria sobre a função do amor.

Nolan já havia brincado com a noção relativa do tempo em "A Origem", que dizia que ele corre em velocidades diferentes dependendo em que nível do sonho o personagem estava. Há uma passagem de "Interestelar" que diz que cada hora passada em determinado planeta equivaleria a sete anos na Terra. O conceito é interessante e cientificamente comprovado (o roteiro teve consultoria do físico teórico Kip Thorne), mas Nolan não o usa em todo seu potencial. Há uma passagem em que um personagem envelhece 23 anos entre uma sequência e outra, mas a não ser por alguns cabelos brancos permanece exatamente o mesmo. Até a conversa continua como se nada muito extraordinário houvesse acontecido.

Por outro lado, há boas sequências quando a personagem da filha de Cooper, Murph, volta à cena encarnada pela ótima Jessica Chastain (de "Árvore da Vida", este sim bastante similar a "2001"). Chastain consegue imprimir uma boa dose de drama à personagem, dividida entre o amor à ciência e a mágoa pela ausência do pai. É inevitável, porém, não lembrar da personagem de Jodie Foster em "Contato", baseado em livro de Carl Sagan, que também tratava de viagens intergalácticas em wormholes. A relação entre a personagem de Foster e o pai também era o centro dramático daquele filme.

Assim, há de tudo um pouco em "Interestelar". Ou melhor, há muito de tudo em "Interestelar". O filme se beneficiaria com o corte de algumas sequências (como a passada em um planeta coberto de água, por exemplo, que não é fundamental ao roteiro); acredito também que teria sido um filme muito mais interessante se Nolan não quisesse explicar tudo nos mínimos detalhes. "Antigamente nós olhávamos para o céu e nos maravilhávamos", diz Cooper em uma cena. Nada como um bom e velho mistério.

João Solimeo
Câmera Escura

terça-feira, 4 de novembro de 2014

O Senhor das Moscas (Netflix)

O começo de "O Senhor das Moscas" ("Lord of the Flies", 1990), disponível no Brasil pela Netflix, parece uma daquelas aventuras infanto-juvenis escritas por Júlio Verne, como "Dois Anos de Férias" (1888). Um grupo de uns 20 garotos sobrevive a um acidente de avião e naufraga em uma ilha deserta. Aparentando ter no máximo 13 anos, os garotos estão todos vestindo uniformes de um colégio militar e, a princípio, agem com maturidade diante da tragédia. O tempo, as adversidades e principalmente a natureza humana vai mudar este quadro.

O filme, dirigido por Harry Hook, é baseado no famoso livro escrito pelo britânico William Golding em 1954. Ao contrário do otimismo apresentado pelo colega francês Júlio Verne, Hook escreveu "Lord of the Flies" no período pós 2ª Guerra Mundial, com o mundo dividido entre Ocidente e Oriente, na Guerra Fria. Em uma alegoria não muito sutil, o livro de Golding não vê o ser humano com muita esperança. As crianças, sozinhas na ilha e tendo que lutar para sobreviver, acabam aos poucos abandonando a civilização e regredindo a estágios primitivos. (mais abaixo)


Filmado na Jamaica com bela fotografia de Martin Fuhrer, o que mais impressiona na versão cinematográfica de Hook é o ótimo elenco infantil. O grupo acaba se dividindo entre a liderança natural de dois garotos, o idealista Ralph (Balthazar Getty) e o rebelde Jack (Chris Furrh). Ralph acredita na ordem e na civilização. Ele convoca assembleias para discutir os rumos da colônia de garotos, criando grupos de pesca e coleta de frutas. Ralph também organiza a manutenção de uma fogueira para tentar atrair a atenção de um possível resgate. Já Jack valoriza a liberdade e organiza grupos de caça aos porcos selvagens que existem na ilha.

O filme, a princípio, pode parecer um bom programa de aventura para crianças, mas atenção; o desenrolar da história leva a alegoria de Golding a caminhos extremos e muito violentos. Há uma cena particularmente perturbadora, envolvendo a morte de uma criança, que surpreende pela forma gráfica com que é mostrada. Cuidado, portanto, pais que pretendem ver o filme com os filhos. Disponível na Netflix.

Obs: Fãs da série de TV "Lost" vão reconhecer e achar curiosas as referências apropriadas pelos criadores da série, como a queda do avião em uma ilha, a caça aos porcos selvagens, a divisão dos sobreviventes em grupos distintos e até mesmo a presença (ou não) de um "monstro" misterioso na floresta.

João Solimeo
Câmera Escura

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Relatos Selvagens

"Relatos Selvagens" é composto por seis episódios cheios de ironia e humor negro. O filme é escrito e dirigido por Damián Szifrón e é uma co-produção entre a Argentina e a Espanha (representada por ninguém menos que Pedro e Agustín Almodóvar). O humor de Szifrón é afiado mesmo nas situações mais absurdas.

A primeira história se passa em um avião em que, misteriosamente, todos os ocupantes parecem ter alguma relação com um homem chamado Pasternak. O final é engraçadíssimo.

No segundo episódio, um homem pára em um pequeno restaurante de beira de estrada durante um temporal. A garçonete (Julieta Zylberberg) o reconhece; foi ele quem causou a morte do pai dela e assediou a mãe. Por anos ela sempre quis estar de frente com ele para lhe dizer poucas e boas. Mas a cozinheira (Rita Corteze) tem uma sugestão mais assustadora (e tentadora).

O terceiro episódio é, talvez, o melhor do filme. Ele mostra o que acontece quando dois homens estão atrás do volante de um carro. Leonardo Sbaraglia está dirigindo um carro de luxo em uma estrada e tenta passar outro carro, velho e sujo, dirigido por Walter Donado. Os dois se "estranham", Leonardo baixa o vidro e ofende o dono do outro carro. Alguns quilômetros à frente, porém, o carro de luxo é obrigado a parar na beira da estrada por causa de um pneu furado e o outro carro estaciona para tirar satisfações. Segue-se uma escalada da violência conforme cada um tenta mostrar ao outro quem é o mais forte.


No quarto episódio, o grande Ricardo Darín (que já foi visto nos cinemas por aqui em outro filme episódio este ano, "O que os homens falam") é um engenheiro de demolições que se vê enredado em um mar de corrupção e burocracia kafkanianas quando tenta recuperar seu carro, que havia sido guinchado injustamente pelo departamento de trânsito. Darín é o grande astro do cinema argentino e tem posição de destaque no pôster do filme. É sobretudo um ótimo ator e neste episódio não é diferente. O final é deliciosamente irônico.

O quinto episódio trata do tema da impunidade. Um rapaz de família rica, voltando de um bar na BMW do pai, atropela uma mulher grávida e foge da cena do acidente. O pai (Oscar Martinez) chama o advogado (Osmar Núñez) para tratar do assunto e eles planejam colocar um "laranja" para assumir a culpa pelo atropelamento. Os diálogos entre o pai e o advogado são ótimos. Qual o preço da liberdade de um filho?

O último episódio trata de infidelidade e problemas conjugais em plena cerimônia de um casamento. A noiva (Erica Rivas) descobre que a amante do marido está na festa e resolve se vingar dele. As consequências são desastrosas.

"Relatos Selvagens" foi um grande sucesso na Argentina e concorreu à Palma de Ouro no Festival de Cannes. Também foi o filme escolhido para tentar uma vaga ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro pela Argentina. A alta qualidade de todos os episódios faz com que o filme não caia no problema de outros exemplares do gênero, que geralmente alternam curtas bons com outros ruins. Há uma continuidade visual e temática entre os episódios muito interessante. Os problemas do casamento de Darín parecem explodir no episódio da noiva. O carro visto como arma no episódio dos dois motoristas causa a morte de uma mulher grávida em outro episódio. A opressão da vida urbana moderna, violência, estresse e burocracia caberiam perfeitamente no Brasil. Para não perder. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

Câmera Escura

terça-feira, 21 de outubro de 2014

O Último Concerto

Um quarteto de cordas é composto pelo primeiro violino, segundo violino, viola e violoncelo. Os quatro devem tocar como se fossem um único instrumento, complementando e apoiando um ao outro. O quarteto "A Fuga" toca há 25 anos e, na superfície, é afinado a harmonioso. Em um ensaio, porém, o violoncelista Peter (Christopher Walken) percebe uma dificuldade em acompanhar os outros. "Nosso vibrato está diferente", diz Daniel (Mark Ivanir), o metódico e perfeccionista primeiro violinista do conjunto. Peter vai consultar um médico e descobre que está com os primeiros sinais do Mal de Parkinson. Para um violoncelista, isso pode significar a aposentadoria. Para "A Fuga", perder Peter poderia representar o fim do quarteto.

"O Último Concerto" é escrito e dirigido pelo austríaco Yaron Zilberman. Foi produzido em 2012, mas lançado só agora nos cinemas brasileiros, mostrando um dos últimos trabalhos do grande ator Philip Seymour-Hoffman ("Antes que o diabo saiba que você está morto"), que morreu no começo deste ano. Hoffman, muito bem como sempre, interpreta Robert, o apaixonado segundo violinista do grupo. Ele é casado com Juliette (Catherine Keener, de "Onde vivem os monstros"), que toca viola; os dois têm uma filha adulta, Alexandra (Imogen Poots) que também é violinista. Um dos temas do filme é como a vida de um instrumentista clássico é dominado pela música. Músicos, como todo artista, têm um ego bastante grande; como administrá-lo em um quarteto? (leia mais abaixo)


O anúncio da possível aposentadoria de Peter e sua troca por uma violoncelista desperta nos membros da "Fuga" sentimentos que ficaram reprimidos durante 25 anos. Robert (Hoffman), por exemplo, resolve que não quer mais ter um papel secundário no grupo e quer alternar com Daniel o lugar de primeiro violinista. Juliette (Keener) não sabe se quer continuar no quarteto se Peter sair e as atitudes de Robert fazem com que ela duvide do próprio casamento. Daniel, o frio e equilibrado primeiro violinista, se vê tentado a seguir o coração em um romance complicado com Alexandra. Não demora muito para que todos estejam em pé de guerra.

Filmes sobre música não são raros e costumam seguir algumas fórmulas (curiosamente parecidas com as dos filmes sobre esportes). Há o treinamento rigoroso e o abrir mão da vida pessoal pela carreira. Há a vaidade em se apresentar em público. Há o desejo de se atingir a perfeição e conquistar a performance perfeita. Filmes como "Encontro com Vênus" (1991), de István Szabó, "O Concerto" (2009), de Radu Mihaileneau, "O Quarteto" (dirigido pelo ator Dustin Hoffman em 2012), entre vários outros, seguem estas fórmulas.

"O Último Concerto" não é diferente. O filme deve muito à qualidade do elenco. Christopher Walken, particularmente, está ótimo, fugindo um pouco da caricatura e criando uma interpretação sincera como um músico veterano. O mundo apresentado pelo filme pode não ser do agrado do grande público. A música clássica, infelizmente, não é tão popular por aqui quanto é nos Estados Unidos ou Europa. Tanta dedicação como a apresentada pelos personagens pode parecer exagerada para a maioria das pessoas. Tocar música clássica requer não apenas o dom, mas treinos rigorosos para tentar alcançar a intenção do compositor. 

O quarteto para cordas nº 14, Opus 131, de Beethoven, apresentado no filme, foi interpretado pelo Quarteto de Cordas Brentano. Em cartaz no Topázio Cinemas, em Campinas.

sexta-feira, 17 de outubro de 2014

Bem-vindo a Nova York

Em maio de 2011, o diretor do FMI Dominique Strauss-Kahn foi preso em Nova York acusado de ter estuprado uma camareira de hotel. Além do cargo no Fundo Monetário Internacional, Strauss-Kahn era cotado como candidato à presidência da república da França. O escândalo forçou sua renúncia do FMI e acabou com suas ambições políticas.

O episódio ganha vida nas telas com roteiro e direção do veterano diretor americano Abel Ferrara ("O Rei de Nova York"), em um filme marcado por polêmicas. Ferrara não está interessado em fazer um thriller convencional, em que o espectador fica tentando descobrir a culpa ou inocência do protagonista. O filme abre com um letreiro explicando o caso, dizendo que o roteiro foi baseado o máximo possível nos fatos conhecidos publicamente, mas que o que aconteceu na intimidade era uma obra de ficção. O letreiro até termina com qualquer suspense ao dizer que o caso foi arquivado pois a justiça entendeu que não havia como provar a versão da camareira.

Do que trata, então, o filme de Ferrara? O grande ator francês Gérard Depardieu ("Minhas tardes com Margueritte") interpreta Devereaux, o diretor do Banco Mundial que está em uma viagem de negócios em Nova York. Desde a primeira vez que o vemos, Devereaux está cercado por prostitutas, mesmo em uma reunião de negócios. Ferrara filma de forma quase documental, com takes longos, uso de lentes zoom e correções de foco (embora não seja aquele estilo nervoso de câmera na mão comum nestes casos). Devereaux não é um homem agradável. Depardieu, enorme em talento e tamanho, enche a tela com um personagem abjeto, que vê toda mulher como algo a ser usada para o sexo.



A primeira meia hora de filme não é confortável de se ver; a câmera de Ferrara filma longas cenas de sexo em grupo, em imagens de gosto duvidoso. Depardieu interpreta Devereaux como um porco, inclusive gemendo de forma animalesca nas cenas de sexo. A necessidade destas sequências é questionável e Abel Ferrara enfrentou vários problemas para lançar o filme (que no Brasil recebeu a classificação etária de 18 anos).

Depois destas intermináveis cenas de sexo chega a cena chave do filme. Uma camareira, sem saber que Devereaux estava no quarto, entra para limpar e o encontra nu, saindo do chuveiro. Ele a vê como mais uma prostituta e parte para cima dela. Ela resiste, foge e o acusa de tentativa de estupro. Tudo é mostrado lentamente por Ferrara, que reproduz as cenas reais de tribunais sem aquele glamour associado a filmes do gênero. As cortes são austeras, rápidas e profissionais. Há uma longa sequência mostrando todos os passos pelos quais Devereaux passa ao ser preso. Novamente, parece que estamos vendo um documentário e há força nas imagens arquitetadas por Ferrara.

A veterana Jacqueline Bisset interpreta Simone, a esposa de Devereaux. É daquelas mulheres que fazem vista grossa para as várias infidelidades do marido e o tratam como um moleque malcriado. Depardieu e Bisset trabalharam com François Truffaut no passado e há até uma cena em que  Devereaux está assistindo a um filme do mestre francês, "Domicílio Conjugal". Os dois têm várias sequências juntos em longas cenas que, por vezes, parecem improvisadas.

Não fica muito claro, porém, o que Abel Ferrara quer dizer com esta história. A personagem da camareira desaparece pouco depois da acusação e nunca mais é vista, e o crime de estupro fica perdido em meio ao comportamento escandaloso "normal" de Devereaux. Há cenas que o mostram com outras mulheres, que vão para a cama com ele voluntariamente ou à força. Fica difícil entender qual é o atrativo que este homem desprezível tem. É tudo uma questão de dinheiro? É uma crítica ao sistema financeiro? À política? Por que o espectador deve se interessar por este personagem que, nas palavras do próprio, não sente nada por ninguém, nem por ele mesmo?

Mesmo irregular, porém, a direção segura de Ferrara e a entrega de Depardieu ao papel fazem de "Bem-vindo a Nova York" uma experiência interessante, apesar de não muito agradável. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Locke (Netflix)

Alfred Hitchcock tinha tal domínio sobre o que fazia que gostava de se desafiar com situações limitantes. Fez um filme inteiro passado em um bote em "Um Barco e Nove Destinos" (1943); em "Festim Diabólico" (1948), uma série de planos sequência simulavam um movimento contínuo de câmera, em tempo real; em "Janela Indiscreta" (1954), colocou James Stewart preso a uma cadeira de rodas e fez todo o filme do ponto de vista dele. Hitch, provavelmente, aprovaria "Locke", filme escrito e dirigido por Steven Knight, disponível na Netflix.

Ivan Locke (Tom Hardy, de "Os Infratores") é um empreiteiro responsável pela construção de um novo edifício em Birmingham, Inglaterra. Na véspera do dia crucial para o projeto, quando mais de 200 caminhões virão despejar toneladas de concreto nas fundações do prédio, Locke entra em sua BMW e parte para Londres, em uma viagem que vai mudar sua vida. Em uma proeza técnica considerável, os 85 minutos do filme se passam dentro do carro de Locke; Tom Hardy é o único ator  que vemos durante toda a produção.

Ele não está sozinho, no entanto. As vozes de uma série de personagens podem ser ouvidas pelo viva voz do seu celular, e Locke tem que resolver problemas em três frentes distintas: o canteiro de obras que ele deixou para trás, com várias pessoas desesperadas precisando da orientação dele; sua família, composta pela esposa e dois filhos, entusiasmados pela transmissão de um jogo importante de futebol e o aguardando em casa; e Bethan (Olivia Colman), uma mulher que está em Londres em trabalho de parto de um filho ilegítimo de Locke. Os dois haviam dormido juntos por uma única vez no ano anterior, nas comemorações de uma obra bem sucedida. Locke tem consciência de que fez algo errado e decidiu, justo nesta noite, quebrar com uma vida regrada e íntegra para consertar este erro, nem que tenha que destruir sua carreira e casamento no processo. (leia mais abaixo)


Filmes vistos por um único ponto de vista não são novidade; em 2010, Ryan Reynolds passa o tempo inteiro dentro de um caixão em "Enterrado Vivo", angustiante filme de Rodrigo Cortés. Robert Redford também é o único ser humano visto pelos 144 minutos de "Até o Fim", dirigido por J.C. Chandor em 2013. E Colin Farrell fez um filme praticamente solo em "Por um Fio", em 2002, dirigido por Joel Schumacher.

Assim como nestes outros exemplos, o que marca "Locke", além do feito técnico, é o lado humano. Ivan Locke está longe de ser perfeito. Ele é sem dúvida um workaholic, embora tenha uma visão bastante filosófica sobre seu trabalho. "Concreto é delicado como sangue", diz ele a um subordinado desesperado. Tudo isto é apresentado ao espectador como em uma rádio novela, enquanto Locke viaja pela noite inglesa. Tom Hardy carrega o filme nas costas, mas também é digno de nota o ótimo trabalho vocal realizado pelos atores invisíveis com quem ele dialoga pelo telefone.

Apesar de seu deslize conjugal, Locke é um homem íntegro e responsável. Por que, então, ele arriscaria um trabalho de milhões de libras por causa do bebê de uma mulher que ele mal conhece? Por que abrir o jogo com a esposa esta noite? O que seu próprio nascimento tem a ver com isso?

É interessante notar o significado do seu nome; John Locke, um filósofo do século 17, desenvolveu uma teoria conhecida por "tabula rasa", ou "folha em branco". Ivan Locke, nesta longa viagem noturna, decidiu zerar sua vida e recomeçar do zero. Imperdível.

Câmera Escura


quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Garota Exemplar (com SPOILERS)

escrevi sobre este filme aqui no blog, mas após rever o longa de David Fincher resolvi falar mais a respeito. Ao contrário do outro texto, em que tentei ser o mais vago possível, este é um texto voltado a quem já assistiu ao filme. Esta crítica contém spoilers, considere-se avisado.

É possível tecer várias teorias válidas a respeito de "Garota Exemplar". Vou tentar expor algumas ideias que me ocorreram durante as duas vezes que me deixei levar por este filme singular.

Uma imagem me chamou a atenção nesta segunda visita. No terço final do filme, quando Amy volta para casa após ter matado o personagem de Neil Patrick Harris, ela é interrogada pelo FBI e pela polícia. Ela é colocada em xeque pela policial Boney (Kim Dickens), mas consegue se safar. É então que a vemos no banco de trás de um carro, sendo levada para casa. Ela está surpresa com a quantidade de repórteres e curiosos que estão esperando por ela, e podemos ver uma expressão de alegria quase infantil em seu rosto. Após passar pelo inferno (mesmo que um inferno causado por ela mesma), ela retorna para casa como uma espécie de heroína. E, fato importante, as pessoas estão vibrando por ela e não por "Amazing Amy", a personagem de ficção que os pais haviam criado (e feito uma fortuna com ela) em uma série de livros infantis. Eu me pergunto se Amy não fez tudo aquilo apenas para conseguir finalmente superar seu alter-ego literário.


É importante voltar a uma cena no início do filme em que Amy e o futuro marido, Nick, estão em uma recepção para celebrar o casamento fictício da personagem. Amy descreve como os pais haviam transformado a garota fictícia em uma versão perfeita da filha; se a Amy real era ruim em esportes, "Amazing Amy" era uma atleta, e assim por diante. Apesar de filha única, Amy teve que competir a vida toda com uma "irmã" exemplar. O que também nos leva à relação entre Nick e a irmã gêmea dele, Margo (Carrie Coon). Reparem com que desprezo Amy diz ao FBI, na cena descrita acima, que Nick guardava na garagem da irmã as coisas que ele comprou com o cartão de crédito. "Eles são muito próximos", ela sussurra.


Amy quer ser alguém. Ela quer ser uma escritora de verdade, não uma mera colunista de uma revista feminina. Ao mesmo tempo, ela se ressente da família amorosa do marido (que saiu de Nova York para cuidar da mãe doente) e, ao descobrir que ele a está traindo com uma aluna, quer se vingar dele. Mas não creio que vingança seja o único desejo dela. Ela não quer uma simples vingança. Ela quer planejar a história perfeita, o "livro" perfeito. Perceba com que paixão literária ela mergulha na escrita do diário falso em que descreve seu relacionamento. A policial, quando o encontra na cabana do pai de Nick, mal consegue parar de lê-lo. Nós da platéia também embarcamos na ficção de Amy. Ela usa de clichês românticos como o encontro por acaso em uma festa ou a criação de "símbolos" afetivos do casal, como o cobrir do queixo do marido quando está dizendo a verdade. Ela cria "caças ao tesouro" a cada aniversário de casamento, forçando o marido a seguir pistas, como em um ensaio para o crime perfeito que ela fará um dia.

Amy, mesmo em fuga e morando em um motel barato, não consegue ficar longe dos programas sensacionalistas da TV que a transformaram na heroína que ela sempre quis ser. Falhando em ser uma escritora na vida real, ela decidiu se tornar autora do próprio drama doentio, e planeja levar a todos com ela.

Nick, no final, parece estar ciente disto tudo. "Vocês devem estar muito orgulhosos dela", ele diz aos sogros em uma cena em que Amy está há quatro horas dando autógrafos. A ironia do texto de Gillian Flynn e do filme de David Fincher é que, no fundo, as pessoas fariam de tudo para ser bem sucedidas e famosas. E para manter um relacionamento, por mais doentio que seja. Apesar de tudo o que passou com a esposa, Nick Dunne se rende às maquinações de Amy e entra no jogo dela. É o advogado (sempre prático) que diz: "Vocês têm um contrato para fazer um filme, um livro, o bar vai virar uma franquia...você deveria agradecer à ela". E acrescenta: "Só não a irrite".

Kim Novak em "Um Corpo que Cai" (1958)

Janet Leigh em "Psicose" (1963)

Rosamund Pike em "Garota Exemplar"

Um parênteses para as várias referências ao mestre Hitchcock. Rosamund Pike é a perfeita loira de Hitchcock, e estaria à vontade em um filme dele. Há várias referências a "Psicose", como a cena do chuveiro (o sangue escorrendo pelo ralo), ou a cena em que um policial encontra Amy dormindo dentro do carro e ela vai embora. Há toques de "Um Corpo que Cai" também. O filme de Hitchcock ficou famoso por revelar seu segredo no meio da trama, e não no final, e o mesmo acontece em "Garota Exemplar". Há também o tema de alguém querer transformar outra pessoa em um imagem idealizada, como James Stewart faz com Kim Novak em "Um Corpo que Cai". A questão do casamento, suas alegrias e problemas, também foi usado por Hitchcock em "Janela Indiscreta", em que Grace Kelly quer se casar com o fotógrafo James Stewart, que está reticente a respeito. Ele assiste a vários tipos de relacionamentos (inclusive um que termina em morte) pela janela do apartamento, onde está preso com uma perna quebrada, e não acha que é uma boa ideia.  

Várias outras teorias podem ser feitas a partir do filme de Fincher. Assista o filme e desenvolva a sua.

João Solimeo

domingo, 5 de outubro de 2014

Garota Exemplar

Ok, por onde eu começo? Provavelmente, por David Fincher. Que diretor hoje teria a capacidade de pegar uma trama rocambolesca e novelesca como a de "Garota Exemplar" e conseguir, primeiro: lhe  dar coesão; segundo: não entregar uma telenovela? Não conheço o livro de Gillian Flynn que serviu de base para o roteiro (adaptado pela própria Flynn), mas ele parece ter todos os elementos de um best seller de sucesso sensacionalista escrito por figuras como Sidney Sheldon ou Patricia Highsmith.

Fincher é um técnico consumado que construiu sua carreira a partir de videoclips meticulosamente dirigidos (como Vogue, de Madonna), comerciais de TV e como técnico da ILM, a empresa de efeitos especiais de George Lucas. Apesar de uma estréia cinematográfica mal sucedida em "Alien³" (1992), estabeleceu sua visão de mundo um tanto sinistra em filmes como "Se7en - Os Sete Pecados Capitais" (1995), "Clube da Luta"(1997) e o excepcional "Zodíaco" (2007). Apaixonou-se pelo cinema digital (Fincher é um dos principais usuários das câmeras RED) e levou a técnica ao limite em filmes como "A Rede Social" (2010), "Os homens que não amavam as mulheres" (2011) e a série "House of Cards", da Netflix. Fez até algumas bobagens pelo caminho, como "O Curioso Caso de Benjamin Button" (2008) e filmes divertidos, mas menores, como "Quarto do Pânico" (2002).

Todo este preâmbulo para voltarmos a "Garota Exemplar", do qual é difícil falar da trama (ou das múltiplas tramas) sem revelar seus segredos. Fincher subverte as convenções do thriller e entrega algo a mais, um olhar afiado sobre a sociedade do espetáculo criada pela mídia com a colaboração do público.

No dia do quinto aniversário de casamento de Nick (Ben Affleck, de "Argo") e Amy (Rosamund Pike, de "Jack Reacher - O Último Tiro"), ela desaparece em pleno ar. A polícia encontra traços de sangue pela casa e outras pistas de um suposto crime. Nick é o principal suspeito, mas ele parece tão perdido que, a princípio, a polícia pega leve com ele. Amy era muito bonita e havia sido uma escritora de sucesso; seu desaparecimento poderia ter sido causado por algumas figuras do passado, como um obcecado ex-namorado, Desi (interpretado por Neil Patrick Harris, da série "How I met you mother").


Os pais de Amy, que haviam sido da alta sociedade de Nova York, organizam uma campanha na mídia para encontrar a filha e comovem a nação. O comportamento de Nick é considerado estranho. Ele não parece tão abalado com o sumiço da esposa e não consegue interpretar o papel do "marido desesperado" em frente às câmeras. Ele está escondendo alguma coisa?

Os segredos do casal são revelados aos poucos através de uma montagem paralela que mistura cenas do presente com trechos lidos por Amy diretamente do diário dela. Ela descreve um casamento que começou de forma perfeita mas, aos poucos, foi sendo minado pela crise financeira e supostos atos violentos por parte de Nick.

Fincher e o roteiro de Flynn brincam o tempo todo com a percepção do público. Logo descobrimos que não podemos acreditar piamente nas informações apresentadas, nem mesmo nos supostos flashbacks contando a história do casal (dizem que Hitchcock sempre se arrependeu de ter usado um falso flashback em um de seus suspenses, "Pavor nos Bastidores", de 1950, mas o recurso é muito bem utilizado aqui).

"Garota Exemplar" não tem a seriedade contida de filmes anteriores de Fincher, como "Se7en", cujo roteiro, racionalmente, também não fazia muito sentido. As várias reviravoltas transformam o filme em uma série de episódios cada vez mais absurdos, que Fincher contrabalança com o aumento da sátira e até mesmo com comentários metalinguísticos dos personagens. É bem vinda a entrada de um advogado interpretado muito bem por Tyler Perry, que faz uma espécie de contraponto satírico aos fatos da trama. Todo o elenco, aliás, está muito bem (a começar por Affleck e Pike); destaques para Carrie Coon (muito parecida com Joan Cusack), que interpreta a irmã gêmea de Affleck, e Kim Dickens como a policial que é a "voz da razão" do filme.

O final, bastante irônico, pode decepcionar àqueles que esperam uma resolução tradicional. "Zodíaco" também não terminava da forma "redonda" que muitos queriam. "Garota Exemplar", com sua mistura de suspense, sensacionalismo, sexo e muito sangue, porém, é um dos melhores filmes do ano.

sábado, 27 de setembro de 2014

Era uma vez em Nova York

A cena final de "Era uma vez em Nova York" ("The Immigrant") é de uma beleza inquestionável; uma junção das ótimas interpretações de Joaquin Phoenix e Marion Cotillard (de "Ferrugem e Osso"), da direção de James Gray e da fotografia (em gloriosa película) de Darius Khondji .

Mas chegar até ela não é fácil, nem para os personagens nem para o público. Esqueça os lances cômicos de Chaplin (que fez um filme com este tema há quase um século); esqueça a nostalgia cinematográfica de Sérgio Leone em "Era uma vez na América" (1984) ou mesmo de Coppola em "O Poderoso Chefão Parte 2" (1974). Gray faz a imigrante polonesa Ewa (Cotillard) passar pelo inferno em um filme que está longe de ser perfeito, mas é marcante.

Em 1921, Ewa é uma imigrante polonesa que está em Ellis Island, Nova York. Era nesta ilha que, à sombra da Estátua da Liberdade, o destino de centenas de imigrantes do mundo todo era decidido todos os dias. Ewa e a irmã Magda deveriam ser recebidos pelos tios, mas eles não apareceram para buscá-las. Magda está com tuberculose e é levada a um hospital de imigrantes, e Ewa é colocada na fila para deportação. A sorte dela parece mudar quando Bruno (Phoenix), um homem bem vestido e educado, fica comovido pela história de Ewa e consegue liberá-la da imigração e levá-la para Nova York. (leia mais abaixo)


Aos poucos, porém, Ewa descobre que os interesses de Bruno não são altruístas. Ele se revela uma mistura de artista, empresário e cafetão que explora um grupo de garotas que apresentam um show chamado "As maravilhas do mundo" em um pulgueiro da cidade. As moças, além de mostrarem o corpo no show, eventualmente acabam se prostituindo. A relação entre Bruno e Ewa é complicada. Ela acredita que Bruno vai conseguir libertar a irmã de Ellis Island; já Bruno está obcecado por Ewa. E então surge Orlando (Jeremy Renner), um mágico que teve um problema com Bruno no passado. Ele bate os olhos em Ewa e, claro, também se apaixona.

Tudo isto é contado por James Gray (de "Amantes" e "Os Donos da Noite", também com Joaquin Phoenix) de forma lenta e, infelizmente, não muito clara. O filme tem diversos falsos começos e reviravoltas que não levam a lugar algum. Há um vai e vem desnecessário para Ellis Island e algumas coincidências um tanto teatrais, como personagens que aparecem justamente no pior momento possível. Há uma cena de assassinato em que a polícia tenta achar o culpado só por uma cena; no resto do filme, o assunto parece esquecido. E o que motiva Ewa? A não ser pela obsessão de libertar e irmã e por uma bela cena passada no confessionário da igreja, ela se mantém inerte e apática.

Tudo culmina, como já dissemos, em uma cena final muito boa, uma espécie de catarse em que as emoções finalmente são expostas e o destino dos personagens é traçado.

O plano final é uma obra prima. Só não espere uma viagem agradável até ele. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.

Câmera Escura

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Mesmo se nada der certo

Este é daqueles filmes tão "bonitinhos" que está a um passo do piegas. "Begin Again" é escrito e dirigido por John Carney, que em 2006 surpreendeu o mundo com "Apenas uma Vez" ("Once"), filme de baixíssimo orçamento, gravado com câmeras semi-profissionais pelas ruas de Dublin (Irlanda), que caiu nas graças do público e chegou a ganhar um Oscar de melhor canção.

Neste percebe-se a intenção clara de repetir o sucesso anterior com os mesmos elementos: um roteiro simples, fortemente baseado na música, passado nas ruas de uma cidade grande (Nova York), e um romance não convencional. Se não fosse o enorme carisma do elenco (quem não quer ver Mark Ruffalo e Keira Knightley juntos?)  o filme poderia se perder no caminho.

Ruffalo é Dan, um daqueles personagens comuns em filmes americanos, um produtor musical que já foi grande mas agora é o típico looser. Ele mora em um apartamento caindo aos pedaços, dirige um carro antigo, está sempre bêbado e não emplaca um sucesso há anos. Uma noite ele entra em um bar e vê uma bela garota inglesa, Gretta (Keira Knightley, de "Anna Karenina"), cantando no palco. O público não se entusiasma com a apresentação, mas os instintos musicais e empresariais de Dan o fazem querer gravar com ela. O problema é que ele havia sido despedido da gravadora naquela mesma manhã.

A trama é contada de forma não linear, e flashbacks nos mostram como é que Gretta foi parar naquele bar. Ela havia vindo a Nova York com o namorado, um músico em ascensão chamado Dave Kohl (interpretado pelo vocalista do Maroon 5, Adam Levine). Os dois eram como unha e carne, mas o sucesso subiu à cabeça do rapaz, que trai Gretta com uma garota da gravadora.

Assim, os personagens de Ruffalo e Knightley se conhecem quando estão no fundo do poço. Sem nada a perder e usando as novas tecnologias a disposição (em vários merchandisings da Apple), os dois decidem gravar um álbum pelas ruas de Nova York. (leia mais abaixo)


Carney dirige bem mas o filme, por vezes, passa a impressão de ser um "falso indie". Há aquelas inevitáveis montagens em que vemos os músicos gravando em vários pontos da cidade que nunca dorme, na cobertura de prédios, no metrô e até mesmo em barquinhos no Central Park. Tudo muito ensolarado e festivo, quase um institucional do urbanismo eficiente de Nova York.

A trama dá um pouco mais de profundidade ao personagem de Ruffalo, que tem que lidar com a ex-mulher (a grande Catherine Keener) e uma filha adolescente (Hailee Steinfeld, de "Ender´s Game") que se veste como uma garota de programa. Também emulando "Apenas uma Vez", Carney repete com Ruffalo e Knightley o mesmo tipo de amor platônico vivido por Glen Hansard e Markéta Irglova no outro filme. É um recurso que, sem dúvida, gera uma tensão sexual bem vinda, mas a repetição é um pouco frustrante e até previsível.

Apesar de bastante retrô, o filme flerta com conceitos modernos como a disponibilização de músicas na internet e a mudança do modelo econômico das gravadoras. Nada muito profundo, e tudo termina de forma apropriadamente agridoce, nem tão feliz nem triste. É fácil imaginar fãs do filme saindo por aí (de bicicleta, claro), com um iPhone no bolso, escutando a trilha sonora deste filme.

domingo, 21 de setembro de 2014

Transcendence

A foto de Johnny Depp ao lado o mostra, provavelmente, assistindo a este filme.

"Transcendence" marca a estréia na direção de Wally Pfister, competente diretor de fotografia conhecido principalmente por sua parceria com Christopher Nolan. É compreensível que a convivência com Nolan (que não faz nada pequeno) o tenha levado a arriscar seu primeiro longa metragem em um filme ambicioso e cheio de grandes ideias. O roteiro também foi escrito por um iniciante, Jack Paglen, o que só ajuda a explicar os problemas do filme.

As boas credenciais de Pfister conseguiram trazer um elenco de peso, composto quase todo por atores da "trupe" habitual de Nolan, como Morgan Freeman (da série "Batman"), Cillian Murphy (também de Batman e de "A Origem") e Rebecca Hall (de "O Grande Truque"). O britânico Paul Bettany está no lugar de Michael Caine e o papel de Johnny Depp, se fosse em um filme de Nolan, provavelmente seria interpretado por Christian Bale ou Hugh Jackman.

Johnny Depp interpreta Will Caster, um cientista que está desenvolvendo uma I.A. (Inteligência Artificial) que, se bem sucedida, poderia resolver os problemas da Humanidade. O caso é que um grupo de ativistas anti-tecnologia (chefiados por uma inexpressiva Kate Mara, de "House of Cards") realiza uma série de atentados em que diversos cientistas são mortos e Caster é envenenado por uma substância radioativa. A esposa de Caster, Evelyn (Rebecca Hall, o único sopro de humanidade em todo o filme), dedica as últimas semanas de vida do marido a fazer um "upload" das memórias dele para a Inteligência Artificial. (leia mais abaixo)


Há uma porção de boas ideias aqui. Seria possível transferir todo o conteúdo do cérebro de uma pessoa para um computador? Em caso positivo, este conjunto de memórias seria considerado um "ser vivo"? A personalidade seria mantida? Ela seria "humana"? Imortal? Estas questões são aludidas no filme de Pfister, mas de forma tão rasa que ficam enterradas sob uma trama absurda e incoerente. Fica patente a inexperiência do diretor em dar vida ao material, que é visualizado em belas, mas frias, imagens.

Johnny Depp está particularmente ruim. Seu cientista, enquanto humano, já não tinha muito a mostrar. Depp mantém uma expressão única por todo o filme e um tom de voz mais inexpressivo que o do tradutor do Google, e quando é transferido para o computador fica pior ainda. Rebecca Hall, Paul Bettany e mesmo Morgan Freeman tentam inserir um pouco de vida a personagens vazios e mal desenvolvidos. Cillian Murphy, coitado, anda pela tela sem saber direito o que está fazendo por lá.

E em quê, na verdade, se transformou Will Caster? O roteiro, indeciso, ora dá a entender que o "ser" que habita o computador se trata do mesmo homem que ele era em vida, ora mostra que se trata de outra consciência. Aparentemente, nem o roteirista sabe o que está acontecendo. 

"Transcendence", ao invés de levantar questões, gera dúvidas. Chega-se ao final da mesma forma com que se começou. Com nada.

sexta-feira, 19 de setembro de 2014

Terms and conditions may apply (Netflix)

Quando Osama Bin Laden morreu, um menino americano de sete anos ficou preocupado com a segurança do presidente Barack Obama. Ele expressou esta preocupação nas redes sociais, dizendo que Obama deveria "tomar cuidado". Poucas horas depois, a escola em que o garoto estudava foi invadida por homens do Serviço Secreto, que levaram o menino para ser interrogado. Um irlandês, pouco antes de viajar para os Estados Unidos, mandou um tweet para os amigos dizendo, metaforicamente, que iria "destruir a América". Ao chegar aos EUA, foi detido no aeroporto e passou horas sendo interrogado sobre a suposta "ameaça terrorista". Um comediante, após passar horas em um fila na loja da Apple, chegou em casa e reproduziu no Facebook trechos do filme "Clube da Luta" (David Fincher) que falavam sobre armas e destruição. O FBI e a SWAT derrubaram sua porta minutos depois, procurando as armas e questionando sobre o "atentado".

O documentário "Terms and conditions may apply" (disponível no Brasil pela Netflix) mostra como estas e outras situações, no limite, foram causadas por nós mesmos ao renunciarmos à privacidade toda vez que aceitamos os "Termos e Condições" de serviços online gratuitos como Google, Facebook, Apple, Microsoft e centenas de outros. Quem lê aqueles contratos? Aparentemente, ninguém, e há um motivo para isso.

O documentário compara as políticas de privacidade do Google e Facebook desde o começo do século até hoje, e muita coisa mudou. Um dos principais motivos (ou a principal justificativa/desculpa) foi o atentado às Torres Gêmeas em 11 de setembro de 2001. O governo Bush lançou o "Ato Patriótico" que, na prática, permitia às agências vasculhar a vida online e telefônica dos cidadão americanos (e do mundo), sob a justificativa de prevenir ataques terroristas. Um de seus principais opositores era o então Senador Barack Obama que, ao se tornar presidente, não fez nada para mudar esta situação. Na verdade, a maioria dos escândalos envolvendo a NSA (a agência nacional de segurança americana) explodiu durante a administração Obama. (leia mais abaixo)


O mais assustador é que a grande maioria das informações pessoais disponíveis online foram colocadas lá voluntariamente pelas pessoas, ou melhor, por nós mesmos. Por mim e por você que está lendo estas linhas. Este blog, por exemplo, está hospedado no Blogger, que faz parte do Google. Meu login e senha me dão acesso não só ao blog, mas também a uma conta de e-mail, um canal no youtube e dezenas de outros serviços. Ao mesmo tempo que tenho estas comodidades, acabo expondo centenas de informações pessoais que, sinceramente, não sei onde estão armazenadas ou para o quê podem ser usadas.

Um executivo do Google diz, basicamente, que "quem não deve não teme", mas não é tão simples. Uma análise das palavras chave das buscas de alguém pode chegar a uma conclusão completamente equivocada. Por exemplo, uma pessoa que procure por "decapitações", "esposa morta" e "facas" no Google está planejando um assassinato, certo? Cullen Hoback, o diretor do documentário, foi atrás destas informações e descobriu que quem estava por trás delas era um escritor de uma série de televisão, e não um assassino em potencial.

Assim como no filme "Minority Report", de Steven Spielberg, pessoas estão sendo presas ou questionadas por crimes que elas (ainda?) não cometeram, apenas baseadas no que procuraramm ou publicaram online. Este é um mundo mais seguro por causa disso, ou trocamos nossa liberdade por uma suposta proteção de um Big Brother moderno?

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