O Sr. Luiz na biblioteca do cinema |
Todos os dias, pela manhã, Luiz Carlos acorda cedo e sai para sua
caminhada pelas ruas do bairro Vila Marieta, em Campinas. Volta para casa, onde
mora com a esposa, faz alguns trabalhos domésticos, cuida dos gatos, almoça e,
ao meio-dia, vai para o trabalho. Quem passa na frente ao Topázio Cinemas, no
Shopping Parque Prado, o vê parado na porta, atendendo aos clientes,
chamando-os pelo nome, batendo papo ou sugerindo qual filme assistir.
Luiz Carlos Fidêncio tem 57 anos e nasceu em São Manoel, interior de São
Paulo, distante 195 km de Campinas. Formado em contabilidade, trabalhou 20 anos
na área bancária, 12 deles no Banco Bradesco, em várias funções. Percorreu
diversas agências, ao longo dos anos, por cidades vizinhas como Jaú, Pereiras e
Iracemápolis. Hoje é gerente do Topázio Cinemas. Com quatro salas, o cinema se
distingue dos outros da cidade por dedicar 50% de seu espaço para os chamados
“filmes de arte” (obras européias, asiáticas ou latino-americanas, que não têm
o apelo comercial dos filmes feitos em Hollywood). Não são só os filmes que são
diferentes; o atendimento do Sr. Luiz faz com que este cinema de shopping tenha
aquele mesmo “gostinho” daquelas antigas salas de rua.
Ele veio para Campinas em 1980, em
uma transferência do banco. Tinha 25 anos. Em 2005, após trabalhar para outra
instituição bancária, foi dispensado, pois o departamento em que estava foi
terceirizado. Viu então um anúncio procurando por um gerente no antigo Cine
Jaraguá, no centro de Campinas. A princípio, ele hesitou. “Nunca havia
trabalhado com isso”, diz ele. “Eu não entendia nada de filmes de arte. Fui então
me informar com frequentadores e pessoas que conheciam o assunto”.
O cinema tinha duas salas no
Shopping Jaraguá, na Avenida Brasil, que pertencia à família Quércia. O
ex-prefeito de Campinas e ex-governador de São Paulo planejava derrubar o
shopping e construir quatro torres de edifícios no lugar, desalojando o cinema.
Uma a uma, as lojas que venciam o contrato eram obrigadas a sair, deixando o
lugar com o aspecto de um shopping “fantasma”.
O cinema foi se mantendo, enquanto se procurava por uma alternativa. Maria
Conceição, que hoje é atendente geral no Cine Topázio, lembra que foi fazer uma
entrevista de emprego nessa época. “Achei que era uma pegadinha”, disse ela.
“Era 8 de dezembro, feriado em Campinas, tudo fechado e aquele shopping vazio. Estava
imaginando a vergonha que seria contar à minha família que havia sido
enganada”. Na verdade, ela estava no lugar certo, e foi então que Conceição
conheceu o Sr. Luiz. Descobriu também que tinha muitas coisas em comum com ele,
como morar na mesma região, a poucas ruas de distância.
O Cine Jaraguá, com sua programação
segmentada de filmes de arte, conquistou um público fiel. O filme “Elsa e Fred
– Um Amor de Paixão”, produção da Espanha e Argentina dirigida por Marcos
Carnevale, ficou mais de quatro meses em cartaz, atraindo dez mil espectadores.
Mas então, em dezembro de 2008, o cinema teve que finalmente fechar as portas,
por causa da extinção do shopping. Centenas de espectadores sentiram-se
“órfãos” dos filmes de arte da sala e das dicas do Sr. Luiz.
A equipe (três projecionistas, o porteiro William e a encarregada
Jackelline, além do gerente) se mudou então para o Shopping Prado, em uma
região distante do centro. Com um brilho nos olhos, o Sr. Luiz diz que, mesmo
assim, muitos clientes fiéis migraram para o novo cinema. “Alguns demoraram um
pouco, quase um ano, mas acabaram vindo também”.
É no pequeno escritório do cinema
que ele dá a entrevista. É raro ele ficar ali; a maior parte do tempo está
recepcionando os clientes na entrada do cinema. Uma estante, à direita, está
atulhada com material promocional com a programação das salas. Perto da porta,
na entrada, outra estante guarda dezenas de cartazes dos filmes já exibidos. Ao
fundo, à direita, há um cofre de ferro, velho. Há também uma mesa com dois
computadores e um monitor, onde o Sr. Luiz consulta um programa para saber a
quantidade de espectadores do dia. É uma segunda-feira, quando o movimento é fraco,
mas já passaram por volta de 350 espectadores naquele dia. “De final de semana
temos dois mil, dois mil e quinhentos pagantes. Filme de arte dá certo em
Campinas porque o público não tem outra opção”, diz o Sr. Luiz. “Tinha gente
que ia assistir filmes europeus em São Paulo”.
Ele lembra que havia uma sala de
cinema para umas 300 pessoas em São Manoel, quando era criança. “Eu ia assistir
a clássicos como ‘Ben-Hur’, ‘Os Dez Mandamentos’, esse tipo de filme”, afirma. Filho
homem mais novo de uma família de sete crianças (quatro homens e três
mulheres), o Sr. Luiz confessa que não volta tanto quanto deveria à cidade
natal. “Fico agoniado”, diz ele. “A última vez fui passar três dias, mas não aguentei
aquele silêncio. A gente se acostuma com a cidade grande, Campinas tem de
tudo”.
Sua paixão é o trabalho. “Adoro
lidar com público, sempre gostei.” Casado há 22 anos com Maria das Dores, ele
tem um enteado de 35 anos, José Roberto, que é engenheiro químico e que lhe deu
um casal de netos, um com três e outro com cinco anos de idade. Acorda todos os
dias às 7 horas da manhã para fazer uma caminhada. Depois do almoço, abre o
cinema às 12h30 e fica até o fechamento, depois da última sessão, por volta das
23 horas. Na única folga da semana, às terças-feiras, ele gosta de cuidar da
casa e dos dois gatos. “Isso quando não aparecem outros; minha mulher ralha
comigo porque quero cuidar de todo bicho que aparece”. A esposa, falando nisso,
não gosta de cinema. “Ela já veio uma vez, mas não gostou”.
É muito comum, também, atender frequentadores
que ligam direto para o celular dele. “Vários clientes têm meu número”, diz
ele. “Eles me perguntam sobre a programação, pedem sugestões de filmes”. De
fato, as opiniões dele a respeito dos filmes que exibe são brutalmente honestas.
“Quando não gosto do filme, eu informo que não é bom”. Conceição, a atendente,
confirma. “Uma coisa que o Sr. Luiz tem de bom é que ele não só conhece a
maioria dos clientes, mas o gosto de cada um, e que tipo de filme eles vão
gostar”.
Izabel Villaça, frequentadora do
cinema, confirma. Segundo ela, o Sr. Luiz mantém um negócio intimista, algo que
praticamente não existe mais. “Em que lugar, nos dias de hoje, você pode
telefonar para saber a programação e falar com uma pessoa de verdade?”,
pergunta. Todo domingo, o gerente manda um relatório para a matriz, em
Indaiatuba, dizendo quais filmes são bons e quais são ruins. “Eu quase sempre acerto”.
O filme francês “Minhas Tardes com Margerite”, com Gérard Depardieu, é o
recordista de público nessa nova fase no Topázio. “Ficou mais de quatro meses
em cartaz”. Mas o filme que mais o marcou foi “O Tempero da Vida”, produção
grega de 2003 dirigida por Tassos Boulmetis. “É um filme que mostra a vida, é
maravilhoso”.
Conceição, sorrindo, conta uma
anedota sobre o chefe. “Ele gosta de dizer que é poliglota”, brinca. Como a
programação de arte do cinema exibe filmes de diversos países, nem sempre é
fácil saber a pronúncia correta do título. Conceição diz que o Sr. Luiz faz
questão de procurar algum professor para perguntar como se fala. “Aí ele entra
na salinha para falar com a gente e diz ‘Em que idioma vocês querem que eu fale
hoje?’”.
O Sr. Luiz também é responsável por
uma ação cultural rara de se ver em um cinema. Na sala de espera do primeiro
andar, onde ficam as duas salas dedicadas aos filmes de arte (as duas do térreo
exibem filmes comerciais, que "são bons para fazer caixa"), o
espectador encontra estantes cheias de livros. É a biblioteca do Topázio. Tudo
começou com alguns exemplares. "Um dia o Sr. Luiz deixou quatro livros na
mesinha de centro e eu lhe perguntei o porquê daquilo", diz Conceição, a atendente.
Logo no primeiro dia, uma cliente sentou-se para ler um livro e perguntou se
podia emprestá-lo. Criou-se assim um sistema em que o público traz livros de
casa e os doa ao cinema, ficando à disposição de quem quiser emprestá-los. "Hoje
temos em torno de mil livros, além de uns duzentos em estoque", diz o Sr.
Luiz, orgulhoso, que se apressa em mostrar o livro que está lendo, "Quem
mexeu no meu queijo?", de Spencer Johnson. A direção do cinema, em
Indaiatuba, gostou tanto da idéia que foi criado um clube do livro. Quem doar para
a biblioteca ganha uma carteirinha que dá direito à meia-entrada no cinema.
Para emprestar os livros, no entanto, não há nenhum controle. "Os livros
ficam sob a responsabilidade de cada um", diz o Sr. Luiz. "Já temos
por volta de 200 pessoas cadastradas e não ficamos vigiando se os livros são
devolvidos ou não".
As estantes estão divididas em
livros nacionais e literatura estrangeira. Há de todos os tipos; uma coleção de
Jorge Amado, livros infantis, religiosos, de auto-ajuda. Recentemente, o “Cento
Social Romília Marília” fez uma doação de trezentos livros para a biblioteca.
Conceição retira alguns volumes da estante e os mostra, dizendo "este aqui
foi escrito por um frequentador do cinema, o Sr. Roldan-Roldan" ("Os
Úberes do Infinito"). Outros escritores da cidade também deixaram livros
lá, como "Princípio de uma transformação", de Henri S. Hirigoyen;
"Filosofemas: contributos à contemporaneidade", de Expedito Ramalho
de Alencar; "Romanceiro de Páris e Helena", de Ivanilde Baracho de
Alencar (esposa de Expedito) e "Transparências da Eternidade", de
Rubem Alves.
"Quando a biblioteca começou, o
Sr. Luiz ficou ansioso", diz Conceição. "Todos os dias ele vinha
perguntar se alguém havia deixado algum livro". E acrescenta: "Isso aqui é uma
família".
Da “família Topázio” fazem parte 12
pessoas. O mais antigo é o porteiro William, na casa há oito anos, desde o Cine
Jaraguá. Do outro cinema também vieram os três projecionistas; Marcos, que
trabalha na área desde 1995, diz que o Sr. Luiz nunca interfere no trabalho, a
não ser quando acontece algum problema. Há planos para mudar os tradicionais
projetores de 35mm para digitais em no máximo dois anos e meio. Jackelline
Cruz, a jovem encarregada de 27 anos, diz que ele tem dedicação total ao cinema
e é por causa dele que a casa oferece este atendimento diferenciado. “Tem
clientes que indicam para um amigo, que indica a outro, e assim por diante”.
“Tem gente que diz que é como se
você estivesse na casa de um amigo e resolvesse ver um filme”, completa
Conceição.
Sobre a longa rotina de trabalhar
nos finais de semana, o Sr. Luiz sorri e diz que não liga. “Não tem como
escapar disso. Hoje tudo vira vinte e quatro horas por dia.” A esposa já está
acostumada. “A gente é de família evangélica. Chega final de semana, ela pega o
carro e vai para a igreja. Eu venho ao cinema”.
Câmera Escura
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Um comentário:
Parabéns João pela excelente matéria e por reconhecer tão nobre pessoa como o sr. Luiz.
PAULO CELSO LUI
Gerente Geral
Topázio Cinemas
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