domingo, 30 de outubro de 2011

A criança da meia-noite

Romain (Quentin Challal) é uma "criança astronauta", assim chamado por ter que andar protegido dos pés à cabeça, durante o dia, por uma roupa especial. Ele sofre de um tipo raro de câncer que o impede de se expor aos raios do Sol ou qualquer outra fonte de raios ultra-violeta. Seu médico, o doutor David (o ótimo Vincent Lindon, de "Mademoiselle Chambon") é um homem obstinado que tenta encontrar a cura para a doença há anos. Ele cuida do garoto desde que ele tinha dois anos de idade; o pai verdadeiro, ao receber a notícia de que a doença era incurável, abandonou o garoto e sua mãe. Assim, há naturalmente uma ligação afetiva entre o médico e o paciente, embora o filme de Delphine Gleize esteja longe do dramalhão americano associado a estes filmes sobre doenças terminais.

A figura do médico David, por exemplo, é extremamente contraditória. Após atender por 20 anos e dedicar sua vida a cuidar de pacientes com câncer, ele é chamado pela Organização Mundial da Saúde para um trabalho burocrático. Sua substituta, Carlotta (Emmanuelle Devos, de "Coco antes de Chanel"), aos poucos, descobre que David está relutante em largar seu posto. David sequer consegue contar a Romain sobre sua saída do hospital, o que certamente traz problemas ao relacionamento dos dois. A vida familiar de David também está longe da perfeição. Apesar de ser um médico renomado e prover materialmente uma boa vida para a família, ele não conhece os próprios filhos e tem uma relação distante da esposa. Há uma cena muito breve, e reveladora, em que Romain cruza com um rapaz que nunca havia sido mostrado no filme, e descobrimos se tratar do filho de David.

Quentin Challal, que interpreta Romain, está muito bem. Seu personagem, como um vampiro, só pode circular livremente durante a noite; e é fantasiado como um que Romain vai à uma festa em que conhece a garota com quem vai experimentar o amor pela primeira vez. O filme tem um tom agridoce e trata de forma franca a doença terminal. Em uma cena passada em um restaurante, quando a mãe de Romain lhe permite experimentar uma bebida alcoólica, ele retruca: "por que você não me diz que só posso beber quando crescer?". O espectro da morte paira sobre os personagens o tempo todo mas, apesar de bons momentos de emoção, o filme nunca escorrega para o melodramático. Em cartaz no "Topázio Cinemas".


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Rock Brasília - Era de Ouro

"O Renato Russo era uma esponja de biografias de rock", diz Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana, sobre seu ex-companheiro de banda, que morreu há 15 anos. Apesar deste tempo da morte de Russo e dos 30 anos do chamado "Rock dos anos 80", a mesma moçada que hoje escuta produtos como "Banda Cine" ou "Restart" canta as letras da Legião como se tivessem sido compostas ontem. "Rock Brasília - Era de Ouro", do documentarista Vladimir Carvalho, tenta explicar esta longevidade em um filme que, apesar de ser sobre vários grupos, é centrado da banda de Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá.

O rock que surgiu em Brasília no final dos anos 70 e início dos 80 foi resultado de uma juventude bem de vida, estudada e com recursos, todos filhos de diplomatas, políticos ou membros da elite brasiliense. Na quadra conhecida como a "Colina" circulavam os membros do "Aborto Elétrico", banda formada pelos jovens que formariam a Legião Urbana e o Capital Inicial. Também por lá passavam Herbert Vianna, do Paralamas do Sucesso, e Phillippe Seabra, do Plebe Rude. O documentário mescla entrevistas atuais dos músicos com depoimentos de Renato Russo feitos por Vladimir Carvalho em 1988 e em uma longa entrevista que deu à MTV Brasil em 1994. Estranhamente, todas as entrevistas dos Paralamas são de arquivo do final dos anos 80; há apenas um depoimento atual de Hermano Vianna, irmão de Herbert, que conta como ele foi chamado a Brasília, no papel de jornalista, para fazer a primeira matéria sobre as bandas locais. "Foi uma matéria praticamente comprada", diz ele, rindo. Vianna completa dizendo que Renato Russo já era uma espécie de herói local e que já se comportava como uma estrela. O caminho para as bandas de Brasília foi aberto pelos Paralamas, que conseguiram entregar uma fita de Renato Russo para uma gravadora do Rio de Janeiro. Há uma parte engraçada que mostra como os produtores não sabiam o que fazer com a Legião Urbana. "Eles queriam me transformar em um Bob Dylan do cerrado", diz Russo. Outro momento, mais sério, mostra a confusão causada por um show da Legião em Brasília, em 1986, quando 40 mil pessoas se acotovelavam em um estádio para vê-los. Os primeiros acordes de "Que país é esse?" literalmente incendiaram a multidão, causando a reação da polícia, o ataque de um fã a Renato Russo e centenas de pessoas no hospital. Quando "Quatro Estações" foi lançado em 1989, a Legião Urbana foi alçada de vez ao estrelato, para espanto de Renato Russo que, irônico, diz que não era para ser um disco "pop". Ele cita os primeiros versos de "Há tempos": "Parece cocaína, mas é só tristeza. Talvez tua cidade. Muitos temores nascem do cansaço e da solidão".

O documentário tem acertos e erros. Tenta sair do lugar comum repetindo uma viagem que o Plebe Rude (e a Legião) fizeram para Patos de Minas, no primeiro show fora de Brasília dos grupos; por outro lado, dá muita importância para o Capital Inicial que, apesar do sucesso, nunca foram do mesmo calibre das bandas da época como Titãs, Paralamas e Barão Vermelho. O documentário por vezes perde o foco nas declarações da mãe e da irmã de Renato Russo e do pai de Fê e Flávio Lemos (do Capital Inicial). No geral, porém, traça um interessante perfil das bandas da época e, mais para o fim, contextualiza o final de uma era, causada pela morte de Renato Russo e pelos constantes problemas econômicos que o país atravessou. O documentário termina com um show feito pelo Capital Inicial em 2008 na "Esplanada dos Ministérios", para um milhão de pessoas. Tocando Legião Urbana, é claro.

Câmera Escura

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Homem ao Lado

Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer famoso internacionalmente; sua principal criação, uma cadeira futurista que é a principal atração de seu site (depois de uma foto dele mesmo) já vendeu 500 mil unidades pelo mundo. Sua casa não poderia deixar por menos e Leonardo mora com a esposa e a filha adolescente em uma obra assinada por Le Corbusier que é atração turística.

Uma manhã Leonardo é acordado por marteladas insistentes. A câmera o acompanha pela casa enorme até uma parede em comum que dá para o vizinho de trás, que está abrindo uma janela. O vizinho é Víctor (Daniel Aráoz), um homem de fala grave que explica pacientemente a Leonardo que tudo o que ele quer é um pouco de Sol. Leonardo retruca, dizendo que a janela não só é ilegal como vai invadir a privacidade de sua família. Está estabelecido o impasse e se inicia uma das situações mais complicadas do mundo moderno, que é como lidar com o outro.

O filme dos diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat guarda curiosa semelhança com outro filme argentino lançado recentemente, "Medianeiras", também passado em uma Buenos Aires descaracterizada e moderna. "Medianeiras", inclusive, menciona as pequenas janelas ilegais feitas pelos argentinos para poder trazer um pouco de luz e ventilação para suas moradias. "O Homem ao Lado" soa como uma acidental continuação em que, do outro lado da janela, está um homem de classe alta, muita cultura mas pouco traquejo social. A família de Leonardo é tão limpa e asséptica quanto a casa futurista em que vivem, e a figura extravagante de Víctor lhes parece semelhante à dos bárbaros que chegaram ao Império Romano.

A idéia não é original; o cinema está cheio de exemplos bons e ruins de filmes que mostram os problemas de convivência entre vizinhos. "O Homem ao Lado" se distingue pela ironia com que o roteiro vê as diferenças sociais entre eles. Apesar da atrapalhação causada pela janela e pela obra do vizinho, a presença de Víctor traz cor nova à vida de Leonardo, que em um jantar com amigos discorre sobre como tem lidado com a situação, que ele descreve como "uma experiência antropológica". Há uma cena muito engraçada em que as marteladas do vizinho são confundidas como parte de uma música "concreta" que Leonardo e um amigo estão escutando. O filme é um tanto longo e repetitivo, mas "O Homem ao Lado" é outro exemplo do bom cinema argentino. Visto no Topázio Cinemas de Campinas.

Câmera Escura

domingo, 9 de outubro de 2011

Um Sonho de Amor

Em uma rica mansão em Milão, Itália, um grande número de empregados uniformizados, eficientes e discretos está preparando um jantar especial. É o aniversário do patriarca da família Recchi, um magnata dono de uma rica tecelagem que carrega seu nome; com a idade avançada do Sr. Recchi, ele decide passar a empresa para seu filho mais velho, Tancredi (Pippo Delbono) e para o neto Edoardo (Flavio Parenti). Nos bastidores e calmamente comandando o jantar está Emma (Tilda Swinton), esposa de Tancredi, uma russa de nascimento que aprendeu, com o tempo, a se tornar italiana (o que, no mundo refinado dos Recchi, significa ser eficiente e obediente).

"Um Sonho de Amor" (no original, "Eu sou o amor"), sem exageros, é uma jóia rara. O diretor Luca Guadagnino produz uma obra elegante, extremamente ambiciosa e muito bela de se ver. A direção de fotografia de Yorick Le Saux é deslumbrante. Esta sequência inicial do jantar é filmada à meia luz, em tons quentes que contrastam com o cenário frio de Milão durante uma tempestade de neve. A sofisticação da direção de arte revela, a cada plano, os anos de tradição (e muito dinheiro) que existem naquela família. Ao mesmo tempo, percebe-se que algo não vai bem. O roteiro mostra, aos poucos, os pequenos dramas familiares que vão surgindo, como quando o patriarca se decepciona com o presente dado pela neta Elizabetta (Alba Rohrwacher, de "Que mais posso querer")  que, mais tarde, se revela homossexual. Ou o ciúme não declarado do irmão mais novo por Edoardo, claramente o preferido pela mãe. Para culminar a sequência, ela termina com a chegada de Antonio (Edoardo Gabbriellini), um cozinheiro amigo de Edoardo, que lhe traz um bolo de presente e é apresentado à mãe dele.

Um filme comum seria sobre o adultério de Emma e sobre suas consequências, mas este é um filme mais inteligente. Ele gira em torno das mudanças trazidas pelo tempo e pela sociedade sobre os personagens. Tilda Swinton sempre foi uma atriz excelente e é fascinante o modo como ela encarna o papel de Emma, uma mulher aparentemente sem passado que largou tudo para se tornar membro desta família italiana. A chegada da primavera traz novas cores ao filme e leva os personagens para as ruas, com consequências inesperadas. A revelação da homossexualidade da filha leva Emma a San Remo, onde Antonio, o cozinheiro amigo de Edoardo, planeja abrir um restaurante. Os dois iniciam um caso tórrido e inesperado, filmado por Guadagnino com grande beleza, em cenas passadas em meio à natureza. O relacionamento parece mais uma traição ao filho Edoardo do que ao marido de Emma, constantemente envolvido com a tecelagem e fazendo negócios em Londres.

Claro que a trama não vai acabar bem, mas, novamente, com que elegância o roteiro mescla a decadência familiar dos Recchi com os fatores externos, como a globalização, que vão tirar a tecelagem das mãos da família. Curioso também o modo como a sexualidade é retratada no filme, da frieza entre Tancredi e Emma para o calor de seu relacionamento com Antonio; do homossexualismo de fato de Elizabetta à insinuação de que a amizade entre Antonio e Edoardo poderia se tornar algo mais. Tudo culminando em um final apropriadamente operático, com tragédia, drama e romance resultando em uma emocionante cena de libertação. Imperdível. Visto como cortesia no Topázio Cinemas.

Câmera Escura

domingo, 2 de outubro de 2011

Estranhos Normais

Metalinguagem é um recurso que, quando bem usado, eleva a qualidade de uma obra. É frequentemente utilizada em filmes do roteirista Charlie Kaufman, por exemplo ("Adaptação", "Sinédoque", "Quero ser John Malkovich"), com bons resultados. Quando mal empregada, porém, a metalinguagem pode gerar confusão ou, pior, revelar problemas básicos de roteiro. "Estranhos Normais", de Gabrielle Salvatores (vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro por "Mediterrâneo") é um exemplo de mau uso da metalinguagem.

O que não significa que o filme seja ruim. O recurso é apenas inadequado, desnecessário. "Estranhos Normais" conta a história de duas famílias muito diferentes, reunidas em um jantar pelo fato de que seus filhos Filippo (Gianmaria Biancuzzi) e Marta (Alice Croci) pretendem se casar. Eles têm apenas 16 anos e tanto a família classe alta de Filippo quanto a classe média de Marta são contra. Acontece que todos estes personagens são fruto da imaginação de um roteirista chamado Ezio (Fabio De Luigi), recentemente abandonado pela mulher e tentando escrever seu primeiro longa metragem. Ele se inclui na história em uma cena em que atropela Anna (Margherita Buy), mãe de Filippo, que o convida para o jantar. Lá ele conhece Caterina (Valeria Bilello), uma pianista clássica de 27 anos que está deprimida, e se apaixona por ela. A trama é interrompida de vez em quando pelo próprio Ezio que, cansado de escrever e infeliz com o desenrolar da história, fecha seu laptop; mas os personagens ganham vida própria e importunam o escritor, exigindo que ele termine o roteiro. A inspiração claramente vem da peça "Seis personagens à procura de um autor", de Pirandello, que é inclusive citado no filme. O diretor Gabrielle Salvatores tem origem teatral e o roteiro é baseado em uma peça escrita por Alessandro Genovesi, co-autor do filme.

O problema é que as intervenções metalinguísticas raramente servem para algo útil e mais parecem inseridas para esticar a duração do filme. A idéia original é simples e falta material para desenvolver um longa-metragem. Salvatores tenta compensar este fato com montagens musicais regadas ao som de "Simon and Garfunkel" ou com monólogos em que os personagens falam diretamente com a câmera. O elenco tem boas escolhas, como o divertido pai de Marta, interpretado por Diego Abatantuono, um homem de meia idade que fuma constantemente um baseado e se veste de forma estravagante. Há um leve toque de drama e profundidade na história do pai de Fillipo, Vincenzo, que descobre estar com um câncer terminal mas não consegue contar à família; ele é muito bem interpretado por Fabricio Bentivoglio.

"Estranhos Normais", felizmente, melhora conforme avança para o final, o que de certa forma compensa suas falhas. Destaque para o trabalho de direção de arte, que carrega os planos com as cores vermelho, amarelo e verde, remetendo ao semáforo em que Anna é atropelada pelo roteirista, dando início à trama. Visto no Topázio Cinemas.