sábado, 31 de dezembro de 2011

Melhores de 2011

Fazer listas é sempre complicado. Qual o critério? Como comparar uma animação americana feita com milhões de dólares com um filme europeu de baixo orçamento? Estabelece-se um número? Os dez melhores? Os vinte? O Câmera Escura escreveu 91 textos este ano a respeito de vários tipos de filme, com uma predileção por filmes fora do grande circuito. Há filmes produzidos em outros anos mas que passaram no Brasil ou foram vistos por nós este ano. Obrigado aos leitores e até o ano que vem.

- Os Dez

- A Pele que Habito - Pedro Almodóvar se reinventa, choca e cria uma das histórias de obsessão mais fortes do cinema.

- Melancolia - Lars von Trier pinta um quadro ultra romântico (não no sentido amoroso) sobre o fim do mundo, ao som de Richard Wagner.

- Árvore da Vida - Se Melancolia é o "Apocalipse", o filme de Terrence Malick vai até o "Genesis" para, sem medo de ser pretensioso, explicar o sentido da vida. Há quem ame e quem odeie o espetáculo visual do diretor.

- Meia-Noite em Paris - Woody Allen típico, sim, mas com um toque de mágica e arte que conquistou o mundo.

- Trabalhar Cansa - Juliana Rojas e Marco Dutra fazem um filme brasileiro que não é uma comédia nem tem atores globais e constroem um retrato pesado, com toques de sobrenatural, da classe média do país.

- Um Conto Chinês - Ricardo Darín, o ator argentino mais presente nas telas brasileiras nos últimos anos, enfrenta seus preconceitos na convivência com um hóspede do outro lado do mundo. Escrito e dirigido por Sebastián Borensztein.

- Um Sonho de Amor - A sempre ótima Tilda Swinton em belíssimo filme de Luca Guadagnino. Roteiro, direção de arte, fotografia, interpretações, tudo é apropriadamente exagerado neste ambicioso filme italiano.

- Cópia Fiel - Abbas Kiarostami faz um filme curioso e inteligente sobre identidades, conflitos amorosos e o conceito da Arte em uma tarde passada na Toscana, Itália. Com Juliette Binoche.

- O Garoto da Bicicleta - Os irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne continuam a acertar com seu estilo documental e direto nesta história sobre um garoto abandonado pelo pai e sua amizade com a bela Cécile de France.

- Homens e Deuses - Filme sóbrio, mas comovente, sobre um grupo de monges que vive na Argélia em paz com a comunidade muçulmana local, até a chegada de rebeldes assassinos. De Xavier Beauvois.

- Outros notáveis

- Medianeiras - A crítica deste filme argentino é das mais visitadas no blog. Uma meditação sobre a solidão moderna em qualquer cidade grande do mundo; no caso, uma Buenos Aires irreconhecível.

- Rock Brasília - Era de Ouro - Documentário de Vladimir Carvalho sobre o grupo de jovens de Brasília que reinventaram o rock nacional nos anos 80, encabeçados por Renato Russo e sua Legião Urbana.

- Tudo pelo Poder - O primeiro filme "sério" da leva do Oscar 2012 é dirigido por George Clooney. Com grande elenco encabeçado pelo homem do momento em Hollywood, o bom ator Ryan Gosling, como um assessor de imprensa enfrentando problemas éticos.

- Rango - Esta animação de Gore Verbinski retoma os westerns italianos de Sérgio Leone em um filme mais voltado a adultos do que a crianças.

- Abutres - Ricardo Darín, sempre ele, é um corretor de seguros sem escrúpulos que explora vítimas de acidentes automobilísticos em um filme noturno e seco de Pablo Trapero.

- A criança da meia-noite - Delphine Gleize mostra a vida difícil de um grupo de jovens acometido por um tipo raro e incurável de câncer de pele. Com Vincent Lindon.

- Os nomes do Amor - Michel Leclerc mostra a salada cultural e étnica que é a França de hoje, com vários problemas raciais e sociais. A herança do nazismo toca em um assunto também focado no bom "A Chave de Sarah", com Kristin Scott Thomas.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Missão: Impossível - Protocolo Fantasma

Tom Cruise, aos 49 anos, produz e estrela este quarto filme da série Missão: Impossível, que foi levada ao cinema pela primeira vez em 1996 por Brian De Palma. O segundo filme, dirigido pelo chinês John Woo em 2000, transformou a série em um veículo para o estrelismo de Cruise, que se tornou um James Bond alternativo. J.J. Abrams, em 2006, deu ao agente Ethan Hunt um motivo mais humano para lutar, colocando Michelle Monaghan como a namorada em perigo que ele tem que salvar.

Quando o tema já parecia esgotado, eis que surge Cruise novamente com direção de Brad Bird, que fez sua carreira no mundo da animação. Ele começou dirigindo episódios da série "Os Simpsons" e fez um ótimo longa metragem, "O Gigante de Ferro" (1999), que foi vítima de um mau lançamento dos estúdios Warner, tornando-se um fracasso. Os estúdios Pixar reconheceram seu talento e Bird fez dois sucessos em seguida, "Os Incríveis" (2004) e "Ratatoille" (2007). Quem viu "Os Incríveis" vai reconhecer o talento de Bird em criar cenas de suspense e de espionagem. As cenas em que o Sr. Incrível e a Sra. Elástico têm que invadir o quartel general do vilão Síndrome lembram muito "Missão: Impossível".

"Protocolo Fantasma" traz de volta o espírito de equipe da série original, assim como um senso de humor muito bem vindo. Ethan Hunt se vê envolvido em uma trama que retoma os temas da Guerra Fria quando um agente russo chamado Cobalto (Michael Nyqvist) rouba um lançador de mísseis nucleares do Kremlin. Ele tem um plano (apropriadamente maluco) de que a paz mundial pode ser alcançada após uma guerra nuclear, assim como Hiroshima e Nagasaki se tornaram símbolos depois da II Guerra Mundial. Hunt é acompanhado pelos agentes Benji (o britânico Simon Pegg), Jane (Paula Patton) e Brandt (Jeremy Renner) em uma aventura passada em Moscou, Dubai, Bombain e São Francisco. A sequência passada em Dubai é a mais espetacular e, paradoxalmente, a que menos faz sentido. Para alcançar os servidores do prédio mais alto do mundo, o "Burj Khalifa", Ethan Hunt tem que escala-lo por fora, estilo "homem-aranha", usando luvas especiais. A cena é muito bem feita, com Cruise pendurado a centenas de metros do chão, mas uma pergunta simples derruba qualquer verossimilhança: ninguém pode vê-lo de dentro do prédio? Mais interessantes são as cenas em que Hunt e Benji invadem o Kremlin usando uma tela que os faz invisíveis, ou a sequência em que Paula Patton usa seu "charme" para conquistar um playboy da mídia em Bombain, Índia.

Há uma tentativa de humanizar a história com uma subtrama envolvendo o passado do personagem de Renner e Cruise, mas este é, essencialmente, um filme de ação. Neste aspecto, "Missão: Impossível - Protocolo Fantasma" é extremamente bem sucedido. Brad Bird mantém a adrenalina alta o tempo todo sem atropelar o espectador. O filme é relativamente longo, com 133 minutos, e tem tempo de se desenvolver. O cinquentão Cruise tem várias cenas de heroísmo mas o roteiro dá chance aos outros personagens de ter seus momentos de aventura. A trilha de Michael Giacchino (o melhor compositor de trilhas atualmente) retoma o tema original de Lalo Schifrin, adaptando-o para os diversos países onde se passa o filme. Há uma cena final que deixa clara a possibilidade de outras contiuações; resta saber até quando Tom Cruise vai conseguir passar a imagem de galã de aventuras. Visto no Topázio Cinemas.


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O Garoto da Bicicleta

"O Garoto da Bicicleta" ganhou o prêmio especial do júri no Festival de Cannes deste ano (empatando com o filme turco "Era uma vez em Anatolia"). Ele conta a sensível história de Cyril (Thomas Doret), um garoto de dez anos que foi abandonado pelo pai em um orfanato. Dirigido pelos irmãos Jean-Pierre e Luc Dardenne, o filme tem um olhar documental sobre um garoto que não tem nada de idealizado; Cyril, interpretado magistralmente pelo jovem Doret, é um garoto de verdade, que sente saudades do pai e é turrão, briguento, foge quando pode e agride quem tenta segurá-lo.

Nos primeiros dez ou quinze minutos acompanhamos a luta dele para reencontrar o pai e recuperar sua bicicleta que, insiste, ainda está no apartamento em que morava. A bicicleta lhe é devolvida por Samantha (Cécile de France, de "Além da Vida", de Eastwood, e "Um Segredo em Família"), uma cabeleireira que conhece o garoto por acaso e aceita ficar com ele durante os finais de semana. Os diretores evitam o sentimentalismo fácil, mas a cena em que Cyril reencontra o pai é de cortar o coração. Ele é um homem fraco que trabalha em um restaurante e diz a Samantha que não quer mais ver o garoto, porque está recomeçando a vida e não está preparado para isso. "Diga a ele você mesmo", diz Samantha.

O olhar realista dos irmãos Dardenne mostram como a falta de estrutura familiar e apoio podem expor uma criança a riscos como o tráfico de drogas e os crimes. Um jovem traficante da região atrai o garoto com videogames e, principalmente, lhe dando atenção.  Samantha não consegue entender porque Cyril se envolve com o traficante, mas está tão ligada ao garoto que até perde o namorado por causa dele. Impossível não se lembrar do mestre François Truffaut e seu primeiro longa metragem, "Os Incompreendidos" (1959), que mostrava a vida do jovem Antoine Doinel (Jean-Pierre Léaud), que é abandonado pela família e vai parar em um reformatório. Mas Truffaut tinha um olhar mais carinhoso e nostálgico. Os irmãos Dardenne fazem um filme curto (87 minutos), com pouco espaço para concessões sentimentais. Há algumas cenas idílicas entre o garoto e a bela Cécile de France andando de bicicleta mas, em grande parte do tempo, o mundo não parece um lugar muito seguro para o pequeno Cyril, e o filme termina da mesma forma como começa, em aberto. O filme estréia no Topázio Cinemas, em Campinas, dia 23 de dezembro.


terça-feira, 20 de dezembro de 2011

Tudo pelo Poder

Falta pouco mais de dois meses para o próximo Oscar, o prêmio mais importante do cinema americano. É nessa época que os filmes do circuito comercial apresentam uma qualidade maior do que os tradicionais filmes de ação, efeitos especiais ou comédias românticas. "Tudo pelo Poder" chega como candidato sério a vários prêmios. George Clooney dirige, atua, produz e co-escreve o roteiro desta intriga política; ele interpreta Mike Morris, um dos finalistas à indicação de candidato oficial do Partido Democrata à presidência da república. Clooney é bom diretor, já tendo mostrado seu valor no ótimo "Boa noite e boa sorte" (2005) e em "Confissões de uma mente perigosa" (2002). Ele é abertamente liberal e simpatizante do Partido Democrata, o que não significa que "Tudo pelo Poder" seja um filme enaltecendo o partido. Pelo contrário, é um retrato cínico sobre os bastidores de uma campanha presidencial, em que não basta ser a "melhor pessoa" para ser o melhor candidato.

Ryan Gosling (de "Amor a toda prova") é Steve Meyers, um dos coordenadores da campanha de Morris ao lado do veterano Paul Zara (Philip Seymour Hoffman). Steve é competente mas tem uma característica que, no mundo da política, pode ser um ponto fraco; ele acredita que seu cliente seja não só o melhor candidato, mas um homem íntegro e honesto. "Ele é um político", lhe diz a jornalista interpretada por Marisa Tomei. "Ele vai decepcioná-lo". Morris está concorrendo à indicação democrata contra o Senador Pullman (Michael Mantell), mas seus inimigos verdadeiros estão entre os coordenadores da campanha do adversário, chefiados por Tom Duffy (Paul Giamatti). Como se pode ver, a produção tem um elenco acima da média; Gosling mostra a cada filme que é um ator de primeira e encara de frente feras como Clooney, Hoffman e Giamatti. Este último, como Tom Duffy, representa o tipo de assessor de imprensa que acredita que os fins justificam os meios.

Baseado em uma peça de Beau Willimon, o roteiro foi co-escrito pelo autor com Clooney e Grant Heslov, e é inevitável a comparação com os roteiros que Aaron Sorkin (Oscar de roteiro por "A Rede Social") escreveu para a série política de TV "The West Wing". Os diálogos são inteligentes e revelam o tortuoso processo democrático norte-americano, em que às vezes valem mais os votos dos delegados do que o voto direto da população (deve-se lembrar que George W. Bush chegou à Casa Branca mesmo tendo perdido no voto popular). Para dar mais tempero ao roteiro, Steve se envolve com uma bela estagiária (Evan Rachel Wood, de "O Lutador"), que carrega um segredo que, se revelado, pode se tornar uma "bomba" nas mãos da mídia. Contar mais seria estragar a trama. É curioso como Clooney tenta mostrar que talvez seja possível ser íntegro nas intenções mas podre na vida pessoal. Qual é o limite ético? É válido quebrar as próprias convicções para que o melhor programa de governo chegue ao poder?


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

A Chave de Sarah

Kristin Scott Thomas é Julia Jarmond, uma jornalista americana que construiu uma vida na França. Ela é casada, tem uma filha adolescente e está escrevendo uma matéria sobre um período pouco falado (e vergonhoso) da história francesa. Em julho de 1942, com a França ocupada pelo exército nazista, judeus franceses foram retirados à força de suas casas e levados a um velódromo de Paris, onde passaram cinco dias em condições sub-humanas. "Era necessário fechar a janela por causa do mau cheiro", diz uma vizinha do velódromo, anos depois, à jornalista.

O mais absurdo da situação é que os oficiais responsáveis pela operação não eram nazistas alemães, mas soldados franceses. Quando eles invadiram o apartamento da família Starzynski, em 1942, a pequena Sarah (Mélusine Mayance) levou o irmão Michel para um armário e o trancou lá, dizendo que voltaria para buscá-lo. Sarah e a família são levados primeiro ao velódromo e depois para campos temporários, onde os homens foram separados das mulheres e, depois, as crianças das mães. Sarah, apesar de cada vez mais fraca e doente, segura nas mãos a chave do armário onde trancou o irmão, imaginando um modo de fugir para resgatá-lo.

Dirigido por Gilles Paquet-Brenner, "A Chave de Sarah" alterna de forma eficiente a trama passada em 1942 e a pesquisa realizada por Julia em 2009. Apesar de mais de 60 anos separarem os dois eventos, há pontos em comum que deixam Julia cada vez mais incomodada. O apartamento em Paris que o marido está reformando, por exemplo, pertenceu à família dele desde a época da guerra. Um pesquisador sobre o Holocausto, depois de investigar o endereço, informa Julia que o apartamento havia pertencido à uma família judaica de nome Starzynski. Julia fica obcecada com a história trágica de Sarah e, depois de saber do irmão que havia sido deixado trancado no apartamento, se recusa a morar lá. A família do marido passa a questioná-la sobre o porquê dela estar desenterrando um passado que todos gostariam de esquecer. "A verdade tem um preço, para o bem ou para o mal", responde a jornalista.

Curioso que a trama de "A Chave de Sarah" também foi contada recentemente no filme "Os Nomes do Amor". Naquele filme, a mãe do personagem principal também era uma sobrevivente dos nazistas que havia sido criada em um orfanato, sofrendo com a perda da própria identidade. A colaboração dos franceses no massacre dos judeus é uma ferida aberta na história da Europa, que sofre até hoje com problemas de racismo e antissemitismo. Kristin Scott Thomas é uma ótima atriz que, assim como sua personagem, mudou-se para a França e construiu uma carreira sólida em filmes como "Partir", "Há tanto tempo que te amo" e vários outros. Ela interpreta Julia como uma mulher madura e cansada com a hipocrisia do mundo. Em meio à reportagem ela descobre que está grávida e se recusa a fazer o aborto que o marido gostaria que fizesse.

A parte final sofre pela longa duração e certo didatismo. A busca de Julia pela história de Sarah a leva aos Estados Unidos e depois à Itália, onde o ator Aidan Quinn faz uma participação especial como um filho de Sarah. Bom filme. Visto no Topázio Cinemas, Campinas.

Câmera Escura

domingo, 18 de dezembro de 2011

Borboletas Negras

Na década de 60, na África do Sul, as leis segregacionistas do Apartheid ficaram ainda mais fortes, impedindo os negros da liberdade de ir e vir sem um salvo conduto, de circular em meios de transporte público e de se expressarem livremente. A poetisa Ingrid Jonker (pronuncia-se "ionker") e um grupo de escritores protestavam contra a segregação através de poemas, livros e peças de teatro, frequentemente censuradas pelo governo branco. Depressiva, Jonker cometeria suicídio aos 31 anos jogando-se no mar em 1965. Quando Nelson Mandela assumiu o poder na década de 90, ele leu um dos poemas de Jonker ("A Criança Morta de Nyanga") em seu discurso ao Parlamento.

A vida de Jonker é contada no cinema com direção de Paula van der Oest. A produção segue basicamente as regras das cinebiografias de artistas autodestrutivos; a vida da poetisa, segundo o filme, foi uma mistura de consciência social alimentada por traumas de infância, problemas com um pai dominador e distante, alcoolismo e promiscuidade. A atriz holandesa Carice von Houten (de "A Espiã") interpreta Ingrid de forma convincente e o grande Rutger Hauer interpreta o pai dela, Abraham Jonker, um homem religioso e racista que chefiava o departamento de censura na África do Sul. A visão política da filha lhe era constante forma de embaraço, e ele via a obra dela como mera forma de lhe atacar. Jonker, de fato, responde aos problemas com o pai autoritário envolvendo-se com homens muito mais velhos e tentando chamar a atenção através de um comportamento destrutivo. Ela é salva de um afogamento logo no início do filme pelo escritor Jack Cope (Liam Cunningham, que está muito bem e lembra o ator inglês Rex Harrison), com quem começa a ter um caso. Jack tem idade suficiente para ser pai dela, tem dois filhos e está se divorciando. Ingrid também é recém divorciada e tem uma filha pequena, Simone, que carrega para cima e para baixo, como um pacote, o filme todo.

Passado na Cidade do Cabo, a produção é muito bem feita, com bela fotografia de Giulio Biccari, que compõe os planos através de janelas, reflexos ou plantas, como que mostrando que tanto os problemas políticos do país quanto os problemas psicológicos de Jonker estão escondidos. A poetisa tem mudanças de humor constantes e a tendência de afastar todos à sua volta. Ao abortar clandestinamente um filho de Cope, ela associa o próprio ato com os assassinatos cometidos pela polícia branca contra os negros dos guetos, o que serve de inspiração para o poema narrado por Mandela citado anteriormente. Von Houten é uma atriz muito boa e sua espiral descendente à loucura é bem interpretada. Não é um filme confortável de se assistir. O padrão suicida de Jonker se torna repetitivo e, a bem da verdade, a descrição de sua vida depressiva acaba por tirar a atenção dos acontecimentos políticos que acontecem nos bastidores e, até, levantando questionamentos sobre sua obra. Jonker segue um padrão romântico estabelecido por vários poetas na história da literatura, que aparentemente precisavam destruir as próprias vidas para conseguir produzir sua obra. O filme é válido como mensagem anti racismo e é bom ver atores adultos representando papéis sérios. Como cinebiografia, porém, "Borboletas Negras" acaba por reduzir a obra de Jonker a delírios produzidos em meio a álcool e depressão. Visto no Topázio Cinemas, Campinas.



terça-feira, 13 de dezembro de 2011

O Preço do Amanhã

O diretor e roteirista Andrew Niccol tem apenas quatro filmes como diretor, e seu roteiro para "O Show de Truman" (1998, dirigido por Peter Weir) foi indicado ao Oscar. Niccol tem uma visão de mundo pastante crítica e interessante. Em "Gattaca" (1997), o destino dos homens era ditado pelo código genético, sendo que um mero fio de cabelo poderia  denunciá-lo caso você não tivesse os genes "certos".  "O Show de Truman" (1998) trazia Jim Carrey como um rapaz comum que, sem o saber e contra sua vontade, é a estrela de um programa de televisão que o acompanha 24 horas por dia. Em "S1m0ne" (2002), a computação gráfica cria uma atriz perfeita (mas virtual) para o diretor vivido por Al Pacino. Nicolas Cage é um frio vendedor de armas no pesado "O Senhor das Armas" (2005). Niccol também escreveu a história que Spielberg levou às telas com Tom Hanks em "O Terminal" (2004), sobre um homem obrigado a viver em um aeroporto após seu país entrar em guerra civil. Como se vê, Niccol é obcecado por histórias sobre pessoas comuns esmagadas por algum poder superior , criado pelo próprio homem através do mau uso da tecnologia.

Em "O Preço do Amanhã" não é diferente, e a visão cínica de Niccol é tão inteligente quanto absurda. Em um futuro indeterminado, as pessoas são criadas geneticamente para viver até os 25 anos, quando param de envelhecer; mas há um porém. A partir dos 25 anos, um relógio digital/biológico começa uma contagem regressiva de um ano de vida. Este tempo passa a ser a moeda de troca das pessoas, que podem comprar mais "créditos" (minutos, horas, anos, décadas) através do trabalho ou em trocas com outras pessoas. A premissa é absurda, mas a metáfora do mundo moderno e a interpretação literal do ditado "tempo é dinheiro" feitas por Niccol são tão interessantes que não devem ser descartadas facilmente. No mundo habitado por Will Salas (Justin Timberlake), uma frase como "Ei, tem um minuto?" ganha outro significado. Ele vive nos "guetos", a região pobre da cidade, em que todo mundo tem pressa. Will faz trabalhos em troca de minutos extras e já conseguiu viver três anos além da marca dos 25 regulares. A sociedade está dividida em "fusos horários", regiões separadas por barreiras e guardas armados em que cada nível representa uma casta diferente. No topo está a elite, que literalmente pode viver para sempre, com milhares de anos estocados em bancos ou negociados na bolsa de valores. Após ganhar um século de crédito por salvar a vida de um homem rico, Will resolve ir até o nível mais alto para vingar a morte de sua mãe, que literalmente ficou sem tempo.

A metáfora do sistema econômico moderno é tão interessante que é uma pena que ele tenha que usá-la de forma tão banal, em um filme que mistura ficção-científica, aventura e policial. O personagem de Timberlake se junta à uma garota rica, Sylvia (Samanta Seyfried) e os dois se tornam uma espécie de "Bonnie e Clyde" misturados com "Robin Hood", roubando "bancos de horas" e os distribuindo aos pobres. Eles são perseguidos por um "Protetor do Tempo" chamado Raymond (Cillian Murphy). O roteiro faz observações muito inteligentes sobre a sociedade moderna, em que os ricos se julgam imortais e cada vez mais todos parecem ter a mesma idade. Em "O Preço do Amanhã" todos estão "congelados" com a aparência de jovens de 25 anos, o que faz com que um personagem diga uma das melhores frases do filme. Ao perceber que Timberlake está interessado em uma garota, o homem diz que são tempos complicados, pois não se sabe se a garota é filha, mulher ou mãe dele. É só folhear uma revista de "celebridades" para ver como o mundo real não é muito diferente disso. Quando se trabalha, alguém está literalmente trocando seu tempo de vida por dinheiro, e é visto como "natural" que uma pessoa com recursos financeiros viva mais e melhor do que uma pessoa pobre.

Todas estas boas idéias estão misturadas em um roteiro que alterna bons momentos com cenas sofríveis, e o resultado é um filme interessante que, infelizmente, não atinge tudo o que poderia ser.


sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

Os Muppets

Os Muppets foram criados na década de 70 por Jim Henson, mestre criador de bonecos que já havia marcado época com "Vila Sésamo".  Os bonecos de Henson, apesar de serem fantoches básicos, pareciam ter vida própria e conquistaram o mundo. Vila Sésamo ainda é produzida em vários países e, entre os anos 70 e final dos anos 90, Os Muppets mantinham um show na televisão e fizeram vários filmes para o cinema (o último, "Muppets from Space", foi lançado em 1999).

Será que nesta era de computação gráfica e desenhos violentos Os Muppets teriam lugar? A resposta, felizmente, é sim. Caco, Miss Piggy, Ênio, Animal e todo elenco de bonecos está de volta em um longa produzido pela Disney, que comprou os direitos dos personagens. O filme é escrito e interpretado por Jason Segel, que  é Gary, um rapaz comum de Smalltown (a típica cidadezinha americana) que tem um "irmão" chamado Walter. Os dois fazem tudo juntos desde crianças, mas há um problema: Walter não é humano, é um Muppet. Quando Gary decide levar a namorada Mary (Amy Adams) a Los Angeles para comemorar os dez anos de namoro (em camas separadas), Walter vai junto. Ele quer conhecer o decadente estúdio dos Muppets. Um velho guia (Alan Arkin, uma das várias participações especiais do filme) leva meia dúzia de turistas pelos prédios empoeirados, quando Walter entra no escritório do sapo Caco e descobre um segredo; um magnata do petróleo chamado "Tex Richman" (Chris Cooper, tirando sarro de si mesmo) quer destruir o estúdio para cavar poços no local. Se os Muppets não conseguirem levantar dez milhões de dólares em poucos dias eles perderão os estúdios para Richman.

A fórmula é antiga e já foi usada em diversos musicais; o grupo que não se vê há anos tem que se juntar para  criar uma atração e ganhar o dinheiro necessário para comprar o estúdio (ou escola, orfanato, faça sua escolha) de volta. Walter, Gary e Mary (cada vez mais desconsolada pela falta de atenção do namorado) conseguem encontrar o sapo Caco e eles partem para reunir a turma. Caco, a propósito, está sendo chamado de "Kermit", seu nome original em inglês, na dublagem e material promocional do filme. É uma grande bobagem, provavelmente exigida pelo departamento de marketing da Disney (que não vai precisar mudar o nome escrito nos brinquedos vendidos mundo afora). Independente destas questões, o filme é bastante divertido e é assumidamente nostálgico. O veterano dos musicais da MGM, Mickey Rooney, de 91 anos, aparece durante um número no início do filme. Os estúdios dos Muppets estão cobertos com cartazes promocionais do antigo show, em que estrelas como Steve Martin, Elton John, Orson Welles, Julie Andrews e dezenas de outros apareceram. Há boas piadas, como na cena em que a turma vai procurar Miss Piggy em Paris e a encontram editora da revista de moda Vogue. A secretária dela, claro, é Emily Blunt, a secretária de Meryl Streep em "O Diabo Veste Prada". Jack Black aparece como ele mesmo em uma cena que, sutilmente, faz piada com os filmes em computação gráfica de hoje; quando os Muppets o encontram ele está em seu trailer vestindo uma daquelas roupas usadas para gravar em "motion capture", técnica em que os atores apenas fazem os movimentos que são capturadas por um computador. É um contraste interessante com a técnica simples utilizada para movimentar os Muppets.

O filme, dirigido por James Bobin, é simples, engraçado e apropriadamente ingênuo. O que não impediu a Fox News, nos Estados Unidos, de considerar os Muppets "comunistas", por sua mensagem aparentemente dirigida contra a indústria do petróleo. Para eles, um Manah Manah. (visto no Topázio Cinemas); Site oficial


segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

Os Nomes do Amor

É de se imaginar que uma história de amor entre um homem judeu e uma mulher árabe seja confusa, mas o filme de Michel Leclerc adicionou elementos ainda mais complicadores. Arthur Martin (Jacques Gamblin) é um quarentão que se define como o típico francês. Seu nome é tão comum que ele se sente como um membro da seleção de futebol coreana (em que mais da metade dos jogadores se chamava "Kim"). Já Bahia Benmahmoud (Sara Forestier) tem orgulho de ter um nome único, apesar de ser sempre confundida como brasileira. Ela é descendente de um imigrante ilegal argelino e de uma hippie francesa, mas suas feições (branca e com grandes olhos azuis) não aparentam sua origem. Já Arthur é filho de um ex militar francês que trabalha com energia nuclear e que se casou com uma judia com um passado difícil; os pais dela foram enviados ao campo de concentração de Auschwitz, e ela cresceu em um orfanato. Os pais de Arthur nunca conversavam sobre o assunto e ele passou a vida aprendendo a como falar com eles sobre "nada", já que não podia mencionar assuntos considerados tabu.

A família de Bahia, apesar de muito mais liberal, também guarda um segredo. Quando criança, ela foi abusada sexualmente por um professor de piano. Segundo os psicólogos, Bahia tinha duas opções quando se tornasse adulta: tornar-se pedófila ou prostituta. Ela decidiu tornar-se prostituta, mas de um tipo diferente. Seguindo o ditado "faça amor, não faça a guerra", Bahia tem como missão transar com homens da "direita" para mudar sua opção política. Assim, do encontro deste homem reprimido e careta, Arthur, com esta garota desinibida e política, Bahia, o roteiro faz uma bizarra história de amor. Mistura-se a isso uma forte dose de crítica aos problemas raciais e de imigração que existem hoje na França e se tem "Os nomes do amor".

O filme foi escrito pelo diretor Michel Leclerc e por sua esposa, Baya Kasmi, com grande quantidade de fatos autobiográficos. Há tantas questões sendo tratadas (racismo, imigração, nazismo, sexismo, política etc) que o roteiro peca por excesso. O ponto principal, quando todas estas diferenças acabam se chocando, demora a chegar em uma ótima cena em que Michel, Bahia e seus pais se encontram em um jantar. Sara Forestier é um vulcão em erupção o tempo todo, contrastando com o modo frio e controlado de Jacques Gamblin. Há partes românticas, como na delicada cena em que Arthur veste Bahia, misturadas a  outras  inverossímeis, como quando Bahia se esquece de colocar as roupas e sai nua pelas ruas. É usado o recurso (já um tanto batido) dos personagens falarem diretamente para o espectador, principalmente quando contam a história de seus pais. Em outros momentos, os personagens conversam com versões mais novas deles mesmos.

"Os nomes do amor" melhora quando diminui um pouco o ritmo para dar lugar à seriedade de certas situações, como a reação da mãe de Arthur ao ser confrontada pelo passado. A II Guerra Mundial ainda tem marcas profundas na Europa ("Things all long gone, but the pain lingers on", como diz a letra de Pink Floyd, The Wall), e a França teve um comportamento questionável na época. As consequências podem ser sentidas até hoje e o filme levanta, de modo leve, questões extremamente sérias. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.



domingo, 4 de dezembro de 2011

Gato de Botas

O primeiro "Shrek" foi lançado pela DreamWorks em 2001 e foi um sucesso acima do inesperado. O sarcasmo e as piadas rasas foram consideradas uma resposta ao estilo comportado dos filmes da Pixar e "Shrek" foi recebido com entusiasmo nas bilheterias. Entre as dezenas de paródias com os contos de fadas havia um personagem que chamou a atenção, o gatinho de olhos grandes e voz suave (de Antonio Banderas) chamado Gato de Botas. O ogro verde teve mais três continuações, arrecadou uma fortuna e o Gato de Botas acaba de ganhar seu primeiro filme.

Dirigido por Chris Miller (de "Shrek Terceiro"), "Gato de Botas" é melhor do que se poderia esperar. Miller é também ator e interpretou a voz de vários personagens da série (como o Espelho Mágico). Apesar de estar muito longe da fonte original (o conto de Charles Perrault), o "Gato de Botas" tem um humor menos sarcástico do que o apresentado na série "Shrek" e um estilo mais cinematográfico, que lembra o adotado no superior "Rango" (de Gore Verbinski). Tecnicamente a animação é extramamente bem feita, com bela iluminação e seres humanos menos caricatos que em "Shrek". Há uma sequência de dança bastante "realista" (isto é, se gatos pudessem dançar como seres humanos) e boas cenas de perseguições.

O roteiro, claro, é uma bobagem. Gato de Botas, tradicional conquistador e exímio espadachim, decide roubar os "feijões mágicos". Juntam-se a ele o ovo "Humpty Dumpty" (personagem de histórias infantis tradicionais inglesas da "Mamãe Gansa") e a gata Kitty Pata Mansa (voz de Salma Hayek, no original). Eles querem os feijões para poder roubar a gansa dos ovos de ouro no castelo do Gigante, de "João e o pé de feijão". A cena em que os personagens plantam os feijões e sobem ao castelo é tão bem feita que merecia estar em um filme melhor. O resto não passa de clichês envolvendo intrigas, traições e redenção. A pergunta que os pais provavelmente estão fazendo é: as crianças vão gostar? Sim, elas irão gostar. O filme é bastante colorido, o personagem principal engraçado e o roteiro não chega a ser uma afronta tão grande à inteligência. Está longe dos bons tempos da Pixar ou de animações melhores como "Meu Malvado Favorito". Mas para uma animação baseada em um personagem secundário dos filmes de Shrek, repito, é melhor do que se poderia esperar. Site oficial em português. Topázio Cinemas.


domingo, 27 de novembro de 2011

O Céu sobre os Ombros

Mistura de ficção com documentário, "O Céu sobre os Ombros" não é um filme amigável. Não há  preocupação em apresentar os personagens ou situar o espectador. Não há trilha sonora, a não ser uma ou outra música que esteja tocando no rádio (como "Beautiful Girl", do INXS, ou "Eye in the Sky", de Alan Parsons). A câmera é geralmente parada, a fotografia naturalista. Quem são estas pessoas?

Misturar documentário com ficção não é novidade. O mestre Eduardo Coutinho já o fez bem em "Jogo de Cena" e "Moscou", por exemplo. Aqui, o diretor Sérgio Bórges usou sua experiência em curta-metragens e filmes experimentais para mostrar a vida de três pessoas incomuns de Belo Horizonte. Evelyn é uma transexual que faz mestrado na UFMG, dá aulas sobre sexualidade e, à noite, é prostituta (ou como ela mesmo se define, "puta"). Há longas cenas de nudez da personagem que é meio homem, meio mulher e que, na vida, também é dividida. Como conciliar o nível cultural de uma mestranda com alguém que faz programas baratos à noite? "Oral é dez, completo é trinta", diz ela a um cliente.

Há um escritor negro, Lwei (que também passa grande parte do filme andando nu pelo apartamento), que nunca conseguiu terminar um livro. Em longos monólogos para uma companheira que não diz uma palavra, ele explica que precisa de tempo para ficar satisfeito com seus textos. Compara-se a Leon Tolstoi, que teria escrito e reescrito "Guerra e Paz" várias vezes. Ele tem um filho com problemas mentais que lhe causa um "paradoxo"; não se sente bem quando está com ele, sente falta quando não está. Nunca trabalhou e é sustentado pela mãe e pela mulher.

O terceiro personagem, Murari, também é paradoxal. Ao mesmo tempo que é devoto de Hare Krishna e tenta seguir os ensinamentos de paz interior, é membro da torcida organizada do Atlético Mineiro. A cena mais movimentada do filme se passa dentro do "Mineirão", com a câmera focada apenas no rosto dos torcedores, que entoam gritos de guerra nada parecidos com os cânticos Hare Krishna.

Os personagens nunca se encontram, mas há alguns pontos em comum, como a solidão, a vontade de ser melhor e uma curiosa mistura da erudição com o mundano. As dificuldades financeiras existem, mas não são prioritárias. O amor é citado mas, na prática, é em buscar do prazer que os personagens parecem caminhar.  Não é um filme fácil e certamente vai desagradar às grandes plateias. Pesquisando na internet é possível encontrar um universo expandido do filme, principalmente na página no Facebook e no site oficial. Há diversos vídeos mostrando cenas que não estão no original. Visto no Topázio Cinemas, em Campinas.


sábado, 5 de novembro de 2011

A Pele que Habito

Há diversos momentos de repulsa em A Pele que Habito. Momentos em que a sensação de se estar testemunhando algo errado se faz sentir. Uma coisa de pele. Ao mesmo tempo, este é Pedro Almodóvar, com seus maravilhosos movimentos laterais de câmera, com a trilha impecável (à Bernard Hermann) de Alberto Iglesias e fotografia de José Luis Alcaine. E as mulheres de Almodóvar; neste filme, na falta de uma Penélope Cruz, há Elena Anaya, que interpreta Vera, uma misteriosa mulher que habita um quarto de uma mansão em Toledo, Espanha. Vera pratica yoga, faz esculturas, vê documentários e lê muito; veste uma roupa que, como uma segunda pele, a cobre do pescoço aos pés. Ela é prisioneira ou se mantém por vontade própria na casa de Robert (Antonio Banderas)? Ele é um cirurgião plástico que está estudando um método revolucionário de fabricar uma pele artificial, usando métodos discutíveis.

Como em vários filmes de Almodóvar, A Pele que Habito é multifacetado e flerta com o gênero do suspense; este, com toques claros de "filmes B" de terror. Banderas é o "cientista louco" que quer revolucionar a medicina estudando diretamente com seres humanos; Vera é sua cobaia. Ou será que não é assim tão simples? Aparentemente ao acaso, diversas tramas paralelas se amontoam no roteiro, e o filme, por certo tempo, parece não ter rumo. Há um filho perdido que à casa torna, vestindo uma segunda pele na forma de uma fantasia de tigre, durante o carnaval. Há flashbacks que revelam que Robert já fora casado e tinha uma filha, sendo que a duas morreram de forma trágica. A esposa foi carbonizada em um acidente de carro; a filha, após ter sido estuprada, pulou para a morte da janela da mansão de Robert. Há também uma trama envolvendo Vicente (Jan Cornet), um rapaz que vai a uma festa e, drogado, tenta transar com uma garota linda no jardim, contra a vontade dela. Ela é Norma, a filha de Robert, que planeja uma vingança contra o rapaz.

O filme é, ao mesmo tempo, fascinante e indigesto. Há certo atropelo no roteiro, que Almodóvar escreveu baseado no livro "Tarântula", do francês Thierry Jonquet, que não tem a mesma elegância genial de Má Educação, por exemplo. Há também uma tendência forte para o bizarro, e sequências improváveis, como a volta do personagem Zeca (Roberto Álamo), para visitar a mãe Maria (a ótima Marisa Paredes), empregada do Dr. Robert. Em poucos e atropelados minutos descobre-se que ele é fugitivo da lei e Almodóvar cria uma sequência de sexo das mais bizarras de seu cinema, que não é econômico em cenas do tipo. O filme se revela genial da metade para o fim, quando as histórias paralelas se encontram e formam um quadro cruel e assustador. Robert é parte Hannibal Lecter, parte Scottie Feguson (personagem que James Stewart interpretou em Um Corpo que Cai, de Alfred Hitchcock) um homem tão obcecado com a imagem da antiga amada que tenta reconstruí-la.

O tema da sexualidade (e suas perversões) tão presentes nos filmes de Almodóvar, voltam com tudo em A Pele que Habito, mas não da forma cômica que é marca registrada do diretor espanhol. Os personagens são frios e cortantes como um bisturi. Só Vera tem alguns momentos mais passionais, como na incrível cena em que, aparentemente livre, ela entra em seu quarto e fica olhando para as paredes cobertas por inscrições, datas e desenhos feitos nos anos em que ali passou. Em cartaz no Topázio Cinemas.


PS: O trailer abaixo é muito ruim e não reflete o filme de forma adequada.

Um Conto Chinês

Há algo de Magnólia (1999), filme de Paul Thomas Anderson, no roteiro de Um Conto Chinês (escrito e dirigido por Sebastián Borensztein). O filme começa de forma absurda, mostrando um casal chinês em uma linda paisagem; eles estão em um barco no meio de um lago cinematográfico e o rapaz está para pedir a moça em casamento quando, de repente...uma vaca cai do céu e destrói o barco. Lembrou-se de Magnólia?

Corta para Buenos Aires, para a loja de ferragens de Roberto (o onipresente Ricardo Darín). Ele é um solteirão que leva sua vida seguindo uma série de rituais, do modo como toma o café-da-manhã à hora que vai dormir (sempre no minuto exato). Na loja, ele chega a contar quantos parafusos o fornecedor enviou e, quando não bate exatamente com o que diz o pacote, liga para reclamar. Sua vida regrada começa a mudar com a chegada de Mari (Muriel Santa Ana), uma mulher que está claramente apaixonada por ele, apesar da frieza de Roberto. Mas a rotina dele muda pra valer no dia em que o chinês Jun (Ignario Huang) é jogado de um táxi aos pés de Roberto. Jun havia sido roubado pelo taxista e não fala uma palavra de espanhol. A única referência que ele tem é um endereço tatuado no braço. Roberto o leva até o local mas não há ninguém da família de Jun por lá. Roberto a princípio larga o chinês em um ponto de ônibus, debaixo de chuva, mas acaba voltando e o levando para casa.

A convivência entre os dois se torna um exercício de paciência para Roberto, que tem sua rotina atrapalhada pelo hóspede chinês. Jun começa a fazer pequenos serviços em troca de poder ficar na casa, mas até quando essa situação vai durar? As autoridades não são de grande ajuda e a língua é um obstáculo e tanto. Em cenas engraçadas, eles usam até um entregador de comida para traduzir o que Jun está falando. Roberto continua com seu modo difícil de ser e Jun acaba encontrando ajuda em Mari, que continua tentando conquistar o coração de Roberto. O filme é esteticamente bonito, com cenografia precisa e bom trabalho de fotografia. Lugares poucos vistos de Buenos Aires no cinema, como o bairro chinês, ganham destaque. Ricardo Darín continua uma série de bons filmes e é, de novo, corpo e alma deste. A influência de Magnólia continua em uma mania de Roberto, que é colecionar histórias estranhas que recorta das páginas dos jornais. O final do filme vai mostrar como o mundo é cheio de coincidências estranhas.  Em cartaz no Topázio Cinemas.


domingo, 30 de outubro de 2011

A criança da meia-noite

Romain (Quentin Challal) é uma "criança astronauta", assim chamado por ter que andar protegido dos pés à cabeça, durante o dia, por uma roupa especial. Ele sofre de um tipo raro de câncer que o impede de se expor aos raios do Sol ou qualquer outra fonte de raios ultra-violeta. Seu médico, o doutor David (o ótimo Vincent Lindon, de "Mademoiselle Chambon") é um homem obstinado que tenta encontrar a cura para a doença há anos. Ele cuida do garoto desde que ele tinha dois anos de idade; o pai verdadeiro, ao receber a notícia de que a doença era incurável, abandonou o garoto e sua mãe. Assim, há naturalmente uma ligação afetiva entre o médico e o paciente, embora o filme de Delphine Gleize esteja longe do dramalhão americano associado a estes filmes sobre doenças terminais.

A figura do médico David, por exemplo, é extremamente contraditória. Após atender por 20 anos e dedicar sua vida a cuidar de pacientes com câncer, ele é chamado pela Organização Mundial da Saúde para um trabalho burocrático. Sua substituta, Carlotta (Emmanuelle Devos, de "Coco antes de Chanel"), aos poucos, descobre que David está relutante em largar seu posto. David sequer consegue contar a Romain sobre sua saída do hospital, o que certamente traz problemas ao relacionamento dos dois. A vida familiar de David também está longe da perfeição. Apesar de ser um médico renomado e prover materialmente uma boa vida para a família, ele não conhece os próprios filhos e tem uma relação distante da esposa. Há uma cena muito breve, e reveladora, em que Romain cruza com um rapaz que nunca havia sido mostrado no filme, e descobrimos se tratar do filho de David.

Quentin Challal, que interpreta Romain, está muito bem. Seu personagem, como um vampiro, só pode circular livremente durante a noite; e é fantasiado como um que Romain vai à uma festa em que conhece a garota com quem vai experimentar o amor pela primeira vez. O filme tem um tom agridoce e trata de forma franca a doença terminal. Em uma cena passada em um restaurante, quando a mãe de Romain lhe permite experimentar uma bebida alcoólica, ele retruca: "por que você não me diz que só posso beber quando crescer?". O espectro da morte paira sobre os personagens o tempo todo mas, apesar de bons momentos de emoção, o filme nunca escorrega para o melodramático. Em cartaz no "Topázio Cinemas".


segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Rock Brasília - Era de Ouro

"O Renato Russo era uma esponja de biografias de rock", diz Dado Villa-Lobos, da Legião Urbana, sobre seu ex-companheiro de banda, que morreu há 15 anos. Apesar deste tempo da morte de Russo e dos 30 anos do chamado "Rock dos anos 80", a mesma moçada que hoje escuta produtos como "Banda Cine" ou "Restart" canta as letras da Legião como se tivessem sido compostas ontem. "Rock Brasília - Era de Ouro", do documentarista Vladimir Carvalho, tenta explicar esta longevidade em um filme que, apesar de ser sobre vários grupos, é centrado da banda de Renato Russo, Dado Villa-Lobos e Marcelo Bonfá.

O rock que surgiu em Brasília no final dos anos 70 e início dos 80 foi resultado de uma juventude bem de vida, estudada e com recursos, todos filhos de diplomatas, políticos ou membros da elite brasiliense. Na quadra conhecida como a "Colina" circulavam os membros do "Aborto Elétrico", banda formada pelos jovens que formariam a Legião Urbana e o Capital Inicial. Também por lá passavam Herbert Vianna, do Paralamas do Sucesso, e Phillippe Seabra, do Plebe Rude. O documentário mescla entrevistas atuais dos músicos com depoimentos de Renato Russo feitos por Vladimir Carvalho em 1988 e em uma longa entrevista que deu à MTV Brasil em 1994. Estranhamente, todas as entrevistas dos Paralamas são de arquivo do final dos anos 80; há apenas um depoimento atual de Hermano Vianna, irmão de Herbert, que conta como ele foi chamado a Brasília, no papel de jornalista, para fazer a primeira matéria sobre as bandas locais. "Foi uma matéria praticamente comprada", diz ele, rindo. Vianna completa dizendo que Renato Russo já era uma espécie de herói local e que já se comportava como uma estrela. O caminho para as bandas de Brasília foi aberto pelos Paralamas, que conseguiram entregar uma fita de Renato Russo para uma gravadora do Rio de Janeiro. Há uma parte engraçada que mostra como os produtores não sabiam o que fazer com a Legião Urbana. "Eles queriam me transformar em um Bob Dylan do cerrado", diz Russo. Outro momento, mais sério, mostra a confusão causada por um show da Legião em Brasília, em 1986, quando 40 mil pessoas se acotovelavam em um estádio para vê-los. Os primeiros acordes de "Que país é esse?" literalmente incendiaram a multidão, causando a reação da polícia, o ataque de um fã a Renato Russo e centenas de pessoas no hospital. Quando "Quatro Estações" foi lançado em 1989, a Legião Urbana foi alçada de vez ao estrelato, para espanto de Renato Russo que, irônico, diz que não era para ser um disco "pop". Ele cita os primeiros versos de "Há tempos": "Parece cocaína, mas é só tristeza. Talvez tua cidade. Muitos temores nascem do cansaço e da solidão".

O documentário tem acertos e erros. Tenta sair do lugar comum repetindo uma viagem que o Plebe Rude (e a Legião) fizeram para Patos de Minas, no primeiro show fora de Brasília dos grupos; por outro lado, dá muita importância para o Capital Inicial que, apesar do sucesso, nunca foram do mesmo calibre das bandas da época como Titãs, Paralamas e Barão Vermelho. O documentário por vezes perde o foco nas declarações da mãe e da irmã de Renato Russo e do pai de Fê e Flávio Lemos (do Capital Inicial). No geral, porém, traça um interessante perfil das bandas da época e, mais para o fim, contextualiza o final de uma era, causada pela morte de Renato Russo e pelos constantes problemas econômicos que o país atravessou. O documentário termina com um show feito pelo Capital Inicial em 2008 na "Esplanada dos Ministérios", para um milhão de pessoas. Tocando Legião Urbana, é claro.

Câmera Escura

segunda-feira, 17 de outubro de 2011

O Homem ao Lado

Leonardo (Rafael Spregelburd) é um designer famoso internacionalmente; sua principal criação, uma cadeira futurista que é a principal atração de seu site (depois de uma foto dele mesmo) já vendeu 500 mil unidades pelo mundo. Sua casa não poderia deixar por menos e Leonardo mora com a esposa e a filha adolescente em uma obra assinada por Le Corbusier que é atração turística.

Uma manhã Leonardo é acordado por marteladas insistentes. A câmera o acompanha pela casa enorme até uma parede em comum que dá para o vizinho de trás, que está abrindo uma janela. O vizinho é Víctor (Daniel Aráoz), um homem de fala grave que explica pacientemente a Leonardo que tudo o que ele quer é um pouco de Sol. Leonardo retruca, dizendo que a janela não só é ilegal como vai invadir a privacidade de sua família. Está estabelecido o impasse e se inicia uma das situações mais complicadas do mundo moderno, que é como lidar com o outro.

O filme dos diretores Mariano Cohn e Gastón Duprat guarda curiosa semelhança com outro filme argentino lançado recentemente, "Medianeiras", também passado em uma Buenos Aires descaracterizada e moderna. "Medianeiras", inclusive, menciona as pequenas janelas ilegais feitas pelos argentinos para poder trazer um pouco de luz e ventilação para suas moradias. "O Homem ao Lado" soa como uma acidental continuação em que, do outro lado da janela, está um homem de classe alta, muita cultura mas pouco traquejo social. A família de Leonardo é tão limpa e asséptica quanto a casa futurista em que vivem, e a figura extravagante de Víctor lhes parece semelhante à dos bárbaros que chegaram ao Império Romano.

A idéia não é original; o cinema está cheio de exemplos bons e ruins de filmes que mostram os problemas de convivência entre vizinhos. "O Homem ao Lado" se distingue pela ironia com que o roteiro vê as diferenças sociais entre eles. Apesar da atrapalhação causada pela janela e pela obra do vizinho, a presença de Víctor traz cor nova à vida de Leonardo, que em um jantar com amigos discorre sobre como tem lidado com a situação, que ele descreve como "uma experiência antropológica". Há uma cena muito engraçada em que as marteladas do vizinho são confundidas como parte de uma música "concreta" que Leonardo e um amigo estão escutando. O filme é um tanto longo e repetitivo, mas "O Homem ao Lado" é outro exemplo do bom cinema argentino. Visto no Topázio Cinemas de Campinas.

Câmera Escura

domingo, 9 de outubro de 2011

Um Sonho de Amor

Em uma rica mansão em Milão, Itália, um grande número de empregados uniformizados, eficientes e discretos está preparando um jantar especial. É o aniversário do patriarca da família Recchi, um magnata dono de uma rica tecelagem que carrega seu nome; com a idade avançada do Sr. Recchi, ele decide passar a empresa para seu filho mais velho, Tancredi (Pippo Delbono) e para o neto Edoardo (Flavio Parenti). Nos bastidores e calmamente comandando o jantar está Emma (Tilda Swinton), esposa de Tancredi, uma russa de nascimento que aprendeu, com o tempo, a se tornar italiana (o que, no mundo refinado dos Recchi, significa ser eficiente e obediente).

"Um Sonho de Amor" (no original, "Eu sou o amor"), sem exageros, é uma jóia rara. O diretor Luca Guadagnino produz uma obra elegante, extremamente ambiciosa e muito bela de se ver. A direção de fotografia de Yorick Le Saux é deslumbrante. Esta sequência inicial do jantar é filmada à meia luz, em tons quentes que contrastam com o cenário frio de Milão durante uma tempestade de neve. A sofisticação da direção de arte revela, a cada plano, os anos de tradição (e muito dinheiro) que existem naquela família. Ao mesmo tempo, percebe-se que algo não vai bem. O roteiro mostra, aos poucos, os pequenos dramas familiares que vão surgindo, como quando o patriarca se decepciona com o presente dado pela neta Elizabetta (Alba Rohrwacher, de "Que mais posso querer")  que, mais tarde, se revela homossexual. Ou o ciúme não declarado do irmão mais novo por Edoardo, claramente o preferido pela mãe. Para culminar a sequência, ela termina com a chegada de Antonio (Edoardo Gabbriellini), um cozinheiro amigo de Edoardo, que lhe traz um bolo de presente e é apresentado à mãe dele.

Um filme comum seria sobre o adultério de Emma e sobre suas consequências, mas este é um filme mais inteligente. Ele gira em torno das mudanças trazidas pelo tempo e pela sociedade sobre os personagens. Tilda Swinton sempre foi uma atriz excelente e é fascinante o modo como ela encarna o papel de Emma, uma mulher aparentemente sem passado que largou tudo para se tornar membro desta família italiana. A chegada da primavera traz novas cores ao filme e leva os personagens para as ruas, com consequências inesperadas. A revelação da homossexualidade da filha leva Emma a San Remo, onde Antonio, o cozinheiro amigo de Edoardo, planeja abrir um restaurante. Os dois iniciam um caso tórrido e inesperado, filmado por Guadagnino com grande beleza, em cenas passadas em meio à natureza. O relacionamento parece mais uma traição ao filho Edoardo do que ao marido de Emma, constantemente envolvido com a tecelagem e fazendo negócios em Londres.

Claro que a trama não vai acabar bem, mas, novamente, com que elegância o roteiro mescla a decadência familiar dos Recchi com os fatores externos, como a globalização, que vão tirar a tecelagem das mãos da família. Curioso também o modo como a sexualidade é retratada no filme, da frieza entre Tancredi e Emma para o calor de seu relacionamento com Antonio; do homossexualismo de fato de Elizabetta à insinuação de que a amizade entre Antonio e Edoardo poderia se tornar algo mais. Tudo culminando em um final apropriadamente operático, com tragédia, drama e romance resultando em uma emocionante cena de libertação. Imperdível. Visto como cortesia no Topázio Cinemas.

Câmera Escura

domingo, 2 de outubro de 2011

Estranhos Normais

Metalinguagem é um recurso que, quando bem usado, eleva a qualidade de uma obra. É frequentemente utilizada em filmes do roteirista Charlie Kaufman, por exemplo ("Adaptação", "Sinédoque", "Quero ser John Malkovich"), com bons resultados. Quando mal empregada, porém, a metalinguagem pode gerar confusão ou, pior, revelar problemas básicos de roteiro. "Estranhos Normais", de Gabrielle Salvatores (vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro por "Mediterrâneo") é um exemplo de mau uso da metalinguagem.

O que não significa que o filme seja ruim. O recurso é apenas inadequado, desnecessário. "Estranhos Normais" conta a história de duas famílias muito diferentes, reunidas em um jantar pelo fato de que seus filhos Filippo (Gianmaria Biancuzzi) e Marta (Alice Croci) pretendem se casar. Eles têm apenas 16 anos e tanto a família classe alta de Filippo quanto a classe média de Marta são contra. Acontece que todos estes personagens são fruto da imaginação de um roteirista chamado Ezio (Fabio De Luigi), recentemente abandonado pela mulher e tentando escrever seu primeiro longa metragem. Ele se inclui na história em uma cena em que atropela Anna (Margherita Buy), mãe de Filippo, que o convida para o jantar. Lá ele conhece Caterina (Valeria Bilello), uma pianista clássica de 27 anos que está deprimida, e se apaixona por ela. A trama é interrompida de vez em quando pelo próprio Ezio que, cansado de escrever e infeliz com o desenrolar da história, fecha seu laptop; mas os personagens ganham vida própria e importunam o escritor, exigindo que ele termine o roteiro. A inspiração claramente vem da peça "Seis personagens à procura de um autor", de Pirandello, que é inclusive citado no filme. O diretor Gabrielle Salvatores tem origem teatral e o roteiro é baseado em uma peça escrita por Alessandro Genovesi, co-autor do filme.

O problema é que as intervenções metalinguísticas raramente servem para algo útil e mais parecem inseridas para esticar a duração do filme. A idéia original é simples e falta material para desenvolver um longa-metragem. Salvatores tenta compensar este fato com montagens musicais regadas ao som de "Simon and Garfunkel" ou com monólogos em que os personagens falam diretamente com a câmera. O elenco tem boas escolhas, como o divertido pai de Marta, interpretado por Diego Abatantuono, um homem de meia idade que fuma constantemente um baseado e se veste de forma estravagante. Há um leve toque de drama e profundidade na história do pai de Fillipo, Vincenzo, que descobre estar com um câncer terminal mas não consegue contar à família; ele é muito bem interpretado por Fabricio Bentivoglio.

"Estranhos Normais", felizmente, melhora conforme avança para o final, o que de certa forma compensa suas falhas. Destaque para o trabalho de direção de arte, que carrega os planos com as cores vermelho, amarelo e verde, remetendo ao semáforo em que Anna é atropelada pelo roteirista, dando início à trama. Visto no Topázio Cinemas.


domingo, 18 de setembro de 2011

Minhas Tardes com Margueritte

O filme está na sexta semana em cartaz no Topázio Cinemas, em Campinas, e a sala continua cheia. Não é para menos. A história da amizade entre um "ignorante" de bom coração e uma senhora amante dos livros é contada de forma bem humorada pelo veterano diretor francês Jean Becker.

Gérard Depardieu é Germain, um homem que teve a inteligência tolhida a vida toda pela mãe dominadora e cruel, pelos professores da escola ou pelos colegas. Ele vive de vários trabalhos, cuida de uma horta, é bom em trabalhos manuais e sabe o nome dos 19 pombos que alimenta, todos os dias, em uma praça. É neste lugar que ele conhece Margueritte (Gisèle Casadesus), uma senhora gentil que é das poucas pessoas no mundo que não zomba de seus eventuais defeitos. Pelo contrário, aos poucos ela começa a ler trechos de Albert Camus e outros autores clássicos para Germain, que se revela um aluno aplicado. As cenas entre Depardieu e Casadesus são ótimas, uma aula de interpretação.

Flashbacks revelam os problemas de Germain com a mãe, que o gerou depois de um caso passageiro. Ela é uma mulher orgulhosa e rude com o menino, que trata aos berros. O garoto tem que lidar com o abuso da mãe, dos eventuais namorados dela e de seus professores. Adulto, Germain mora em um trailer no quintal da casa da mãe, ainda viva mas, aos poucos, perdendo a lucidez. Ele tem uma namorada que é motorista de ônibus e tem idade para ser sua filha, mas a relação entre os dois revela a maturidade da garota. O filme ainda conta com uma série de personagens secundários muito interessantes, imigrantes e trabalhadores amigos de Germain que passam a trama toda em um pequeno bar. A convivência de Germain com Margueritte provoca uma melhora em seu vocabulário e um aumento em sua cultura, o que não passa despercebido por seus colegas. O roteiro é bem escrito e incorpora na trama elementos aprendidos por Germain dos livros que lê com Margueritte no banco da praça. Tudo isto é visto em bela fotografia de Arthur Cloquet.

O final é um pouco apressado e comportado demais, mas coroa de forma alegre a relação de amizade entre os personagens principais. Belo filme. Visto como cortesia no Topázio Cinemas.

Câmera Escura

domingo, 11 de setembro de 2011

Além da Estrada

O filme começa e termina na água. A primeira vez que o argentino Santiago (Esteban Feune de Colombi) vê a belga Juliette (Jill Mulleady) é no barco entre Buenos Aires e Montevidéu. Ele morava em Nova York mas, com a morte dos pais, resolveu voltar à terra natal e investigar um terreno que a família tem na cidade de Rocha, Uruguai. Após pegar a escritura do terreno com um senhor em Montevidéu, Santiago vê Juliette novamente, puxando uma mala à beira do Rio da Prata, e lhe oferece uma carona. Começa assim o road movie "Além da Estrada", cuja equipe é tão multicultural quanto seus personagens. O diretor é o brasileiro Charly Braun, formado em cinema nos Estados Unidos e que estréia em longas metragens. A produção é brasileira e uruguaia e o elenco conta com o argentino Colombi, a suíça Mulleady e vários não-atores uruguaios, interpretando a si próprios. Do nada, em uma cena, a top model Naomi Campbell faz uma ponta.

"Além da Estrada" é tão zen que, em alguns momentos, corre o risco de se transformar de um road movie em um vídeo amador de viagem. Há apenas um fiapo de roteiro. Santiago e Juliette se conhecem em um daqueles encontros que só acontecem no cinema e a garota é tão bela e bem vestida que, por vezes, parece que se está assistindo a um vídeo de moda. Mas a leveza do roteiro e a curiosidade criada pelos lugares por onde o casal passa mantém o interesse da platéia. O interior do Uruguai é menos conhecido para os espectadores brasileiros do que, digamos, as ruas de Nova York, e é interessante ver a sucessão de paisagens. Há algumas repetições interessantes; em quase todas as cenas há um ou mais cachorros que interagem com os personagens. Há também vários portões de madeira em pequenas estradas de terra perdidas pelo interior uruguaio. Juliette e Santiago acabaram de se conhecer mas há uma intimidade quase infantil entre os dois, que em grande parte do filme são vistos literalmente brincando um com o outro, seja correndo pela paisagem ou jogando-se na água. No caminho, conhecem vários habitantes locais e a interação entre eles e os atores se dá como em um documentário, com os não-atores falando sobre seu modo de vida. Santiago e Juliette visitam um tio dele, que é artista e faz uma vernissage em Punta del Leste. A agitação da cidade contrasta com uma comunidade hippie onde Santiago reencontra Juliette após breve separação.

Além (ou, na verdade, dentro) do road movie, porém, há escondido um álbum de recordações. Durante os créditos são exibidas imagens aparentemente reais de uma família nas mesmas paisagens vistas no longa. O diretor é meio-irmão da atriz Guilhermina Guinle (que é uma das produtoras do filme) e seu pai é argentino; ele passou a infância em vários dos locais mostrados em "Além da Estrada". Braun ganhou o prêmio de melhor diretor no Festival do Rio e o filme é bastante interessante em sua mistura entre realidade, ficção e recordações, embora não seja para todos os gostos. Visto como cortesia no Topázio Cinemas.



segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Medianeiras - Buenos Aires na Era do Amor Virtual

Escrito e dirigido por Gustavo Taretto, "Medianeiras" é simpático e inteligente. É passado em Buenos Aires mas poderia facilmente ser ambientado em São Paulo, Nova York, Tóquio ou qualquer cidade grande do mundo. Econômico nos diálogos, o filme conta a história de Martín (Javier Drolas) e Mariana (Pilar Lópes de Ayala, de "Lope"), dois solitários cujo mundo interior é contado ao espectador através de narrações e colagens de imagens. O estilo lembra muito o usado pelo roteirista e diretor brasileiro Jorge Furtado em filmes como "Ilha das Flores" ou "O Homem que Copiava", embora em um ritmo mais lento.

Martín e Mariana moram a poucos metros de distância em Buenos Aires, mas não se conhecem. Eles compartilham as mesmas angústias de milhões de pessoas no mundo inteiro; solidão, isolamento, dependência de anti-depressivos e problemas de relacionamento. A namorada de Martín foi para os Estados Unidos para passar um mês e nunca mais voltou, deixando com ele a poodle de estimação. Mariana acabou um relacionamento de quatro anos e está morando no mesmo apartamento em que vivia antes do namoro. Martín é um web designer e não lhe falta serviço, mas vive enfurnado em uma kitnete entulhada de monitores, tabuleiros de xadrez, action figures e outras quinquilharias de um nerd solteiro. É hipocondríaco e está se recuperando de uma síndrome de pânico; o primeiro site que criou foi, não por acaso, para seu psiquiatra. Já Mariana é arquiteta mas nunca construiu nada, por falta de oportunidades. Ela ganha a vida criando vitrines para lojas; sozinha em casa, ela conversa com os manequins.

Há dezenas de referências "pop" que, nos dias de hoje, são reconhecíveis em qualquer lugar do mundo. Há citações a "Star Wars", "O Estranho Mundo de Jack" (Tim Burton), "Manhatan" (Woody Allen), "Feitiço do Tempo" (filme em que Bill Murray acorda todos os dias no mesmo dia, uma sutil comparação com a vida repetitiva dos personagens), jogos de videogame etc. E há uma referência importante tirada do livro infantil "Onde está Wally?", em que o famoso personagem tem que ser encontrado no meio de uma multidão de anônimos. É bastante inteligente o modo como o diretor/roteirista se utiliza destas referências para criar uma história bastante humana sobre a individualização da sociedade. Buenos Aires é também uma personagem e uma metáfora. Em um de seus monólogos, Mariana diz que a tecnologia prometeu poder controlar a temperatura de casa pelo celular, para encontrar o apartamento quentinho quando se chega em casa. "É porque não vai ter ninguém nos esperando", diz ela. O filme foi muito bem recebido no último Festival de Gramado, onde ganhou o prêmio de Melhor Filme Estrangeiro. Visto como cortesia no "Topázio Cinemas".

domingo, 4 de setembro de 2011

Amor a toda prova

O casal está no restaurante tentando decidir o que pedir. "O que você vai querer?", pergunta o marido. "Um divórcio", responde a esposa. Assim começa "Amor a toda prova" (mais um desses títulos brasileiros genéricos, inferior ao original, "Crazy, Stupid, Love"). O marido é Cal Weaver, o sempre competente Steve Carell. A esposa, Emily (ninguém menos que Julianne Moore), "não quer magoar" Cal, mas além do anúncio do divórcio ainda confessa ter transado com um companheiro de trabalho, David Lindhagen (Kevin Bacon), o que é mais informação do que Cal estava disposto a receber. Desolado, Cal começa a passar suas noites bebendo em um bar da moda, onde conhece o "homem perfeito", Jacob (Ryan Gosling), um conquistador que leva uma garota diferente para casa todas as noites. Jacob, afetado pela figura triste de Cal reclamando suas "histórias de corno" todas as noites no bar, resolve ajudá-lo a sair do buraco.

Steve Carell, que foi lançado à fama com a comédia escrachada "O Virgem de 40 Anos", tomou um rumo curioso (e muito bem sucedido) em sua carreira. Seu tipo "homem comum" se adaptou tranquilamente a filmes engraçados, mas com um foco mais "família", como "Agente 86", "A volta do Todo Poderoso" e "Eu, meu irmão e nossa namorada" (além da voz de Gru na ótima animação "Meu malvado favorito"). Assim como neste último, Carell eleva o nível do batido gênero "comédia romântica" de "Amor a toda prova", do qual é um dos produtores, com um roteiro inteligente escrito por Dan Fogelman. Robbie (Jonah Bobo, uma boa descoberta), seu filho de 13 anos, é um romântico incurável que é apaixonado pela baby sitter Jessica (Analeigh Tipton), de 17 anos. Ela, por sua vez, é apaixonada pelo patrão Cal e, com o divórcio, Jessica resolve partir para o ataque, consultando a "piranha" do colégio, uma garota que só transa com homens mais velhos. Cal, auxiliado pelas dicas de conquista de Jacob, faz uma reciclagem no guarda roupa, ganha um novo corte de cabelo e, após alguns tropeços, também se torna um conquistador competente. Há uma cena hilariante estrelada por Marisa Tomei, sua primeira conquista, que vale o filme.

"Amor a toda prova", porém, não é um filme sobre conquistas adolescentes. O roteiro, apesar de moderno, é voltado a valores tradicionais como romance e casamento. Cal e Emily têm uma longa história juntos e mesmo Jacob, após conhecer a bela Hannah (Emma Stone), começa a repensar seu modo de vida. Com 118 minutos, o filme poderia ser um pouco mais curto, mas o roteiro inteligente tem até espaço para algumas surpresas e reviravoltas.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Planeta dos Macacos: A Origem

Este filme começa de forma tão acelerada que promete ser uma grande aventura. Will Rodman (James Franco), um geneticista, está apresentando uma droga nova para possíveis investidores de uma empresa farmacêutica; ele promete curar o Mal de Alzheimer e os testes preliminares com chimpanzés foram promissores. Em plena apresentação, no entanto, uma das primatas testadas com a droga se solta e, em fúria, causa caos na empresa até ser abatida pela segurança. O chefe de Will ordena que as pesquisas sejam canceladas e todos os chimpanzés mortos. Will descobre que a chimpanzé estava cuidando secretamente de um filhote e, sem coragem de sacrificá-lo, o leva para casa, onde mora com o pai, Charlie (John Lithgow), que sofre, claro, de Mal de Alzheimer. Charlie se apega ao macaquinho e o chama de César, em homenagem a uma peça de William Shakespeare.

É então que o ritmo do filme muda drasticamente. Dirigido por Rupert Wyatt, este é mais um filme com subtítulo "A Origem" a ser lançado nos cinemas (assim como "Wolverine", "X-Men", entre outros). A saga "Planeta dos Macacos" iniciou-se em 1968, com o clássico dirigido por Franklin J. Shaffner. O roteiro, baseado em livro de Pierre Boulee, passou pelas mãos de Rod Serling (criador da série "Além da Imaginação") e o final surpresa marcou época. Houve quatro continuações, séries de televisão, uma série animada e, em 2001, Tim Burton fez um remake que teve recepção morna. O filme de Wyatt entra na moda das "origens" e, apesar de auxiliado por efeitos especiais realmente impressionantes, tem problemas de ritmo e de roteiro. O chimpanzé César é "interpretado" por Andy Serkis, que se tornou um especialista em atuações criadas em "motion capture"; os movimentos do ator são "capturados" pelo computador e transformados em dados para que o personagem em computação gráfica ganhe vida. Serkis, entre diversos trabalhos, já interpretou Gollum, na trilogia "O Senhor dos Anéis" e o gorila gigante de "King Kong", mas as expressões faciais e a linguagem corporal de César são realmente impressionantes.

O roteiro tem vários tropeços. Não fica muito clara a posição do personagem de James Franco depois do fracasso do início do filme. Há diversas passagens temporais em que o escutamos, em uma locução em off, narrar a evolução de César; a inteligência do macaco é superior aos outros da sua espécie graças aos genes que herdou da mãe, que havia testado a droga do Dr. Rodman. O cientista passa a roubar a droga da empresa (a pesquisa não havia sido cancelada?) e a usá-la no próprio pai que, a princípio, também demonstra uma melhora milagrosa. César cresce e se torna um "adolescente" problemático que começa a questionar (através da linguagem dos sinais) sua origem. Um dia ele agride um vizinho e a justiça determina que ele seja trancafiado no abrigo para primatas da cidade de São Francisco, onde sofre "bullying" dos outros macacos e de um cruel humano (interpretado por Tom Felton, o "Draco Malfoy" da série Harry Potter, igualmente maldoso). Há uma longa passagem que mostra a transformação de César de animal dócil para um ser ferido e ressentido. Aos poucos sua inteligência vai formando um plano de vingança que culmina com dezenas de macacos inteligentes soltos pelas ruas de São Francisco, em um final que acaba sendo um anticlímax.

É possível dizer que a interpretação de César, com todo respeito a James Franco, é a melhor do filme. "Planeta dos Macacos: A Origem", a não ser em momentos isolados, não chega a empolgar. A idéia da "cura" e subsequente epidemia lembram diversos outros filmes, principalmente "Eu sou a lenda", com Will Smith. Vale como marco nos efeitos visuais e, para os fãs da série, como mais um capítulo na saga dos macacos