domingo, 29 de agosto de 2010

Um Segredo em Família

François Grimbert é um garoto amedrontado. Enquanto seus pais, Maxime (Patrick Bruel) e Tania (Cécile de France), são atletas, ele é um rapaz fraco e fechado, que tem um irmão imaginário. Este irmão, ao contrário dele, é forte, ágil e é o orgulho dos pais. São os anos 50 na França, captados pelo diretor Claude Miller em tons fortes e coloridos. O que há de errado com François? Por que a sensação de que há “fantasmas” na vida de seus pais?

“Um Segredo em Família” é baseado na história real de Philippe Grimbert e mostra a ferida do Holocausto de outra forma. François nasceu em uma família judaica e foi circuncidado quando criança, como pregam os ritos. Um pouco mais velho, no entanto, ele é batizado católico pelos pais. Como toda criança, ele capta trechos de conversas sussurradas pelos adultos e constrói sua própria fantasia sobre como os pais se conheceram, se apaixonaram e se casaram. A verdade, porém, é muito mais sombria, e quando adolescente François descobre que há mais verdades na história de seu irmão “imaginário” do que ele pensava.

A trama do filme é muito mais interessante do que o modo como a história é contada. Duas histórias se desenrolam na primeira parte, os anos 50 na França (em colorido) e trinta anos depois, em 1985, em um preto e branco apagado. Estas cenas nos anos 80 mostram François (o ótimo Mathieu Almaric) como um terapeuta especializado em crianças com problemas. Seu pai está desequilibrado com a morte do cachorro, que foi atropelado, e François ainda tem memórias dolorosas da infância. O meio do filme, com François já adolescente, marca o início de outra história, que se passa antes da II Guerra Mundial e revela quem era o irmão “fantasma” de François, um garoto chamado Simon. Seu pai era casado com outra mulher, Hannah (Ludivine Sagnier), mas nutria uma paixão secreta pela cunhada, Tara. A história é muito interessante, mas o filme ganharia com uma narrativa mais linear. O nazismo começa a estender suas garras e os judeus franceses são obrigados a usar a Estrela de Davi, para desgosto de Maxime, que se recusa. Interessante o espelhamento das imagens entre François, no início do filme, e Simon, nesta segunda parte. Simon é um garoto atlético como o pai, e Hannah é a típica esposa judaica perfeita. Mas a atração física cada vez maior que Maxime sente por Tara começa a ficar aparente, o que leva a uma tragédia quando a família tenta fugir dos nazistas para o outro lado da fronteira.

O diretor Claude Miller, que foi gerente de produção de vários filmes do mestre François Truffaut nos anos setenta, conduz muito bem o elenco e cria uma tensão palpável e não dita entre as duas mulheres de Maxime. A Segunda Guerra e o nazismo deixaram marcas na Europa e na Humanidade que se estendem até hoje. “Things all long gone, but the pain lingers on”, como diria uma letra de “The Wall”, do Pink Floyd. Em todas as guerras, as maiores vítimas são as crianças.



sábado, 28 de agosto de 2010

Os Inquilinos

Periferia de São Paulo. Calor insuportável. Classe média baixa. Filas se formam nos pontos de ônibus, onde homens e mulheres embarcam para horas no trânsito. À noite, na volta pra casa, ônibus queimados e comandos policiais se enfileiram no caminho. Valter (Marat Descartes) é um dos milhares de anônimos que enfrentam esta rotina todos os dias. Branco, é casado com Iara (Ana Carbatti), negra, e tem um casal de filhos. Um dia três rapazes barulhentos, encrenqueiros e com jeito de bandidos se mudam para a casa vizinha. A presença destes novos inquilinos inquieta toda a vizinhança e muda a rotina familiar de Valter.

Dirigido por Sérgio Bianchi (de Cronicamente Inviável), o filme é um ótimo exemplo de produto não comercial (e corajoso). Bianchi, que não tem nada de conformado, mostra Valter como um homem comum que é levado aos limites do que é ser um cidadão "de bem", confrontado com uma situação desesperadora. Ele é pobre, mas leva uma vida digna com a família, na casa que foi construída pelo pai tijolo por tijolo, como gosta de contar. A esposa vê os vizinhos pela janela e não gosta do barulho ou da decadência representada por aqueles homens. Ao mesmo tempo, há uma curiosa atração pelo perigo e pelo proibido, representado por Bianchi em cenas que mostram um misto de sonhos e alucinações de Iara com os homens do outro lado do muro. Valter, além de carregar caixas o dia inteiro em um subemprego, frequenta aulas à noite. A escola está sob frequente ameaça do "Partido", que tem feito atentados nos últimos dias. Cássia Kiss faz uma professora que recita poemas de hip hop ou de Carlos Drummond de Andrade, tentando mostrar aos alunos um outro lado da vida que levam.

Curioso como tanto Cássia Kiss quanto Caio Blat e Ailton Graça, que atuam no filme, também estavam em "Bróder", que Jeferson De estreou em Paulínia mês passado. "Os Inquilinos" é um filme mais angustiante. Bianchi traz a violência e o estresse da vida moderna para dentro da casa do brasileiro, independente da sua condição social. Qual o limite? Como lidar com pessoas claramente fora do convívio social? Chamar a polícia? Ou será necessário esperar até que eles façam algo realmente errado? A televisão, ligada constantemente, mostra José Luis Datena metralhando seu circo de horrores. A filha de 12 anos de Valter, mulata de olhos verdes, é precocemente sexualizada pela coreografia de danças "funk" que a faz rebolar no meio da rua, atraindo a atenção dos marmanjos. A esposa, diante da aparente letargia do marido, que não quer entrar em conflito com os vizinhos, envolve um irmão mais "esquentado", que planeja uma ação contra os baderneiros.

"Os Inquilinos" é sufocante. Há um plano fantástico que mostra uma senhora carregando uma cadeira e se instalando na calçada para assistir ao "show" do outro lado da rua, quando a história chega ao sangrento final. Ainda assim Bianchi surpreende. Este não é um filme americano, que fatalmente o transformaria em uma cruzada de um homem só, com Valter assumindo a causa da família e enfrentando os bandidos. A vida real é muito mais sutil e cruel. Depois que todo o sangue corre, há um plano que mostra o ponto de vista contrário do adotado durante todo o filme, visto da cozinha de Iara. Valter, à noite, resolve ir ver com os próprios olhos o que aconteceu na casa vizinha, e é surpreendido pelo sorriso cruel e irônico da própria esposa, o observando do outro lado do muro. Será que somos todos espectadores sádicos nesse mundo violento?

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Karate Kid

Em 1984, o diretor John G. Avildsen usou sua experiência adquirida em “Rocky” (1976), com Sylvester Stallone, para fazer outro tipo de “filme de luta”. Baseado em um personagem em quadrinhos, “Karate Kid” era um bom filme “família” que contava a história de Daniel Larusso (Ralph Macchio) e sua amizade com um zelador japonês, o Sr. Miyagi (Pat Morita), que lhe ensinava karatê. O filme fez grande sucesso e gerou algumas continuações, das quais apenas “Karate Kid II” ainda tinha algo para dizer. Nos violentos anos 80, com seus “Rambos” e “Rockys”, “Karate Kid” se destacava ao falar sobre usar as artes marciais apenas para se defender.

Vinte e seis anos depois, o personagem está de volta, repaginado. Estamos no século XXI e o “futuro” agora está na China. A noção de adolescência também mudou, e o novo Karate Kid se transformou em um garoto negro de 12 anos chamado Dre Parker. Ele é interpretado por Jaden Smith, filho de Will Smith e Jada Pinkett Smith. A mãe de Dre (Taraji Henson) foi transferida para um trabalho na China e os dois partem para o país de Mao, uma surpreendente economia capitalista em um país comunista. É patente o lado “relações públicas” de algumas cenas. A vizinhança para onde Dre e a mãe se mudam é uma China idealizada, com crianças jogando basquete na praça e velhos fazendo exercícios. Não há nada culturalmente diferente na tela, e Dre já está jogando basquete alguns minutos depois que chegou ao país. Quando o zelador lhe explica que a eletricidade do chuveiro é controlada, o garoto lhe diz que isso não existe nos Estados Unidos. Ao que o zelador responde “desligue o interruptor e salve o mundo”, em uma mensagem ecológica. Vinda de um dos países mais poluidores do mundo, a frase parece ter sido escrita por algum relações públicas.

Política à parte, o filme é bastante envolvente. Jaden Smith, apesar de ter herdado vários maneirismos do pai, é basicamente um garoto comum. Atraído por uma garota, ele é atacado por um garoto valentão simplesmente por conversar com ela. Ele leva uma surra e Smith não tem vergonha de mostrar lágrimas de dor. Sua situação fica pior ao descobrir que o valentão estuda na mesma escola, e Dre passa por humilhações e surras diárias. Um dia ele é salvo pelo Sr. Han (Jackie Chan), o zelador do prédio, que se revela um mestre em kung-fu. Algumas cenas e diálogos foram tirados diretamente do “Karate Kid” original, como a cena em que o Sr. Han e Dre vão conversar com o cruel professor de kung-fu do garoto. O Sr. Han consegue uma “trégua” nas surras de Dre, desde que ele participe do torneio de kung-fu que vai ocorrer meses depois.

Sim, kung-fu. “Karate Kid” é apenas o nome da “marca” que vai atrair os fãs dos filmes originais. Jackie Chan, que já está com 56 anos, interpreta o Sr. Han de forma surpreendente. Sempre sério, Chan não se parece em nada com os personagens que costumava interpretar em seus filmes de artes marciais ou em comédias americanas. Há uma bela cena (também baseada em passagem do original), que o Sr. Han conta a Dre sobre a morte precoce da esposa e do filho pequeno. Há também boas passagens de amor adolescente entre Dre e uma garota chinesa e várias sequências turísticas mostrando as paisagens da China. É difícil acreditar que um zelador tivesse acesso à Muralha da China para treinar seu aluno, por exemplo, mas é esteticamente bonito.

A duração, com duas horas e vinte minutos, é excessiva. Produzido por Will Smith e a esposa, a sensação que dá é que nenhuma cena interpretada pelo filho deles foi cortada, e ele está em praticamente todos os planos. E quando o torneio chega, mesmo os que não viram o filme original sabem o que vai acontecer, mas torcemos por Dre da mesma forma.

domingo, 22 de agosto de 2010

Topografia de um Desnudo

Assistir a "Topografia de um Desnudo" é daquelas experiências em que, como espectador e crítico, você imagina o que é que faz um filme ser bom ou não. Ou, antes, o que faz uma série de imagens em movimento se transformar (ou não) em um filme. Será que bastam apenas atores, cenários, um roteiro e uma câmera para fazer cinema?

Primeiro filme produzido com apoio do Pólo Cinematográfico de Paulínia e contando com atores como Ney Latorraca e Lima Duarte, o filme da diretora Teresa Aguiar é um desastre. Há um amadorismo assustador na forma como o roteiro é tratado e transformado em "imagens em movimento". Passado nos anos anteriores ao golpe militar de 1964 e baseado em fatos reais, "Topografia de um Desnudo" retrata como vários mendigos teriam sido mortos pelo "Serviço de Repressão à Mendicância" para "limpar" a cidade para a visita da Rainha da Inglaterra. Os crimes foram chamados pela imprensa como "operação mata-mendigos", o que causou problemas para o governo de Carlos Lacerda.

Gravado em digital, com fotografia uniforme e sem contrastes, o filme está mais para um especial de televisão pobre do que para uma obra cinematográfica. É o primeiro filme de Teresa Aguiar, premiada diretora de teatro, e a falta de experiência é aparente. Há uma mistura de gêneros que se dá logo nos créditos iniciais, contando com entrevistas reais de pessoas falando sobre a operação mata-mendigos. Qual a importância destes depoimentos? Seria para dar mais veracidade à trama? Por que não deixar o filme falar por si próprio? Segue-se uma série de sequencias gravadas de forma teatral, com a câmera um pouco afastada, enquadrando todos os atores, que declamam suas falas de forma exagerada. De vez em quando, inserts de closes dos atores são utilizados para mascarar algum corte ou dar continuidade ao plano. Os atores estão quase sempre rindo enquanto falam uns cons os outros em um tipo de linguagem que não soa em nada como um diálogo da época. Em outros momentos embaraçosos, uma câmera lenta e um acorde pesado na trilha sonora indicam que algo "sério" está para acontecer. Todas as vezes que o personagem de Ney Latorraca aparece, por exemplo, a trilha parece gritar "ai vem o vilão".

E o que dizer da cena de tortura de Lima Duarte? Preso pela polícia, que quer informações sobre uma suposta organização comunista entre os mendigos, seu personagem é torturado em uma série de planos que tentam simular o ponto de vista de uma segunda câmera, em preto e branco e com som distorcido. Quem, nos anos 60, vê o mundo desta forma, como em um programa de televisão moderno (e ruim)? Pode-se argumentar que se tentou usar uma linguagem atual para retratar uma história de época. Mas, se é este o caso, por que os trajes de época? Os carros antigos? Por que mostrar o Rio de Janeiro através de uma série de imagens de arquivo em preto e branco, acompanhadas por uma trilha clichê de samba?

O resultado, infelizmente, é um produto pobre e amador, uma tentativa frustrada e confusa de misturar teatro com cinema, televisão e documentário.


sábado, 21 de agosto de 2010

Almas à venda

Impossível falar de "Almas à venda" sem citar o roteirista e diretor Charlie Kaufman. O filme da diretora Sophie Barthes é uma espécie de colagem dos temas de Kaufman, particularmente dos filmes "Quero ser John Malkovich" e "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças". Isso não significa que seja um filme de segunda categoria, longe disso. O extraordinário Paul Giamatti, famoso por interpretar personagens angustiados com um toque de Woody Allen, encarna um ator de Nova York envolvido em uma produção teatral de "Tio Vânia", de Anton Chekov. O nome de seu personagem? Paul Giamatti, claro. Fazendo uma versão fantasiada e exagerada dele mesmo, Giamatti encontra em um anúncio de revista o que pode ser a solução para seus problemas: uma empresa que alega conseguir tirar a "alma" da pessoa, armazenando-a em um local seguro. A vantagem, segundo a empresa, é que um sujeito "desalmado" pode viver de forma muito mais leve, sem ter problemas de consciência, por exemplo, ou outros dilemas morais.

Como se vê, Paul Giamatti interpretando ele mesmo lembra o tema de "Quero ser John Malkovich", e o processo de retirada da alma lembra "Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças", em que os personagens pagavam para tirar lembranças problemáticas da memória. Sophie Barthes, também autora do roteiro, no entanto, acrescenta ainda uma trama que envolve a máfia russa, que usa mulheres para fazer o papel de "mulas", contrabandeando almas entre os Estados Unidos e a Rússia. Uma delas é Nina (Dina Korzun), uma "mula" que já carregou tantas almas através do Atlântico que ela não sabe mais direito quem é. Ela vaga pelas ruas com "resíduos" das almas que já transportou, tendo flashes de lembranças que não são dela. Giamatti vai até a empresa e é convencido pelo "Dr. Flinstein" (David Strathairn) a passar pela extração de alma. Giamatti fica surpreso com o tamanho dela depois do procedimento. Sua alma, que tanto lhe pesava e atormentava, tem a aparência e tamanho de um grão de bico.

Há, obviamente, grande dose de humor negro por todo o filme. As cenas entre Strathairn e Giamatti, dois grandes atores que por anos foram coadjuvantes em Hollywood, são ricas em diálogos ácidos e irônicos entre o "cientista", frio, otimista e prático e o "artista", emocional, denso e egocêntrico. O roteiro não funciona em alguns detalhes. A personagem de Nina, principalmente, resulta em um enigma não resolvido. Giamatti "aluga" a alma que ele supõe ser de um poeta russo quando, na verdade, pertencia a uma mãe atormentada. O roteiro seria mais interessante, creio eu, se os personagens de Nina e de Olga (a mãe) fossem a mesma pessoa. Mesmo assim, "Almas à venda" é um filme muito interessante e carregado nas costas por Paul Giamatti. Há diversas piadas citando atores americanos como Al Pacino, Robert DeNiro e Johnny Depp, entre outros.


domingo, 15 de agosto de 2010

Insolação

"O Amor não foi feito para sermos felizes, e sim para nos sentirmos vivos". Assim fala Paulo José em um de seus vários monólogos durante "Insolação", filme de Daniela Thomas e Felipe Hirsch. Em cartaz no Topázio Cinemas, em Campinas, o filme é extremamente autoral e se encaixa perfeitamente naquele rótulo de "filme de arte". O roteiro, fragmentado, foi escrito por dois americanos, Will Eno e Sam Lipsyte, a pedido dos diretores, e é baseado na literatura romântica russa.

Não há uma trama no sentido tradicional, com começo, meio e fim. "Insolação" é formado por fios entrelaçados de situações e histórias baseadas no amor, suas alegrias e tristezas. Paulo José, sempre magnífico, é uma espécie de mestre de cerimônias, falando diretamente para a câmera. Seu rosto marcado e seus olhos fundos sugerem experiência e maturidade mas, principalmente, ainda a vontade de tentar aprender e desvendar a vida. Ele vai a um quiosque repetidas vezes pedir um café (que não é vendido no local) para se encontrar com os outros personagens do filme. La está Lucia (Simone Spoladore), uma mulher em busca do sentimento físico do amor, praticando sexo com diversos homens em curto espaço de tempo. Já Leo (Leonardo Medeiros) trabalha para um homem poderoso e está apaixonado por Ana (Maria Luíza Mendonça), uma jornalista que ama outra pessoa. A pequena Zoyka (Daniela Piepszyk), de 13 anos, está apaixonada por Leo. Há outra história de amor envolvendo uma criança e um adulto. O garoto Vladimir (Antonio Medeiros) está apaixonado por Liuba (Leandra Leal), paciente do pai dele.

Estas e outras histórias se passam em uma Brasília totalmente deserta. A maravilhosa direção de fotografia de Mauro Pinheiro Jr revela uma cidade filmada com sol a pino, com os personagens vagando aparentemente sem rumo por paisagens desoladas. A câmera de Mauro gosta principalmente de Simone Spoladore (além de Paulo José, claro), o que rendem belas imagens com muito trabalho de foco e movimento de câmera. Há um plano que vale o ingresso, quando uma chuva cai sobre o rosto de Paulo José e sobre o corpo distante de Spoladore, deitada no chão de concreto.

Não é um filme convencional, o que assustou vários frequentadores, que abandonaram a sala. O ritmo é bastante lento e cabe totalmente ao espectador o trabalho de fazer algum sentido da sequência de cenas aparentemente desconexas. A trilha sonora de Arthur de Faria dá alguma cor aos longos silêncios. Um filme que começa com a palavra "tristeza" sendo escrita no caderno de Paulo José, "Insolação" fala sobre amor e perdas, e não é um trabalho fácil de se ver.


sábado, 14 de agosto de 2010

Os Mercenários

Em uma cena de "Rambo II", de 1985, Sylvester Stallone está em um barco com uma agente vietnamita. Ela lhe pergunta o porque dele ter sido enviado para lá. Ele responde que ele é "expendable" (dispensável, desnecessário). Vinte e cinco anos depois, Stallone está de volta em um filme chamado "The Expendables" (chamado aqui de "Os Mercenários"), que é um curioso exemplo de filme anacrônico, espécie de homenagem aos filmes "macho" dos anos 1980. Stallone recentemente trouxe de volta os personagens que fizeram sua carreira, como Rocky e o próprio Rambo. Desta vez é como se ele tivesse resolvido fazer o filme "macho" por excelência, reunindo em uma só produção praticamente todos os atores de ação de hoje e de ontem. Só faltaram Jean-Claude Van Damme, Steven Seagal e Chuck Norris. Há mais testosterona (embora um tanto envelhecida) na tela de "Os Mercenários" do que em um Maracanã lotado.

Stallone também trouxe de volta um olhar xenófobo e etnocêntrico com relação a tudo que não é americano e não seja falado em inglês. No mundo preto e branco que vivíamos na Era Reagan de Rambo, não havia lugar para o meio termo. Bush Jr e o 11 de setembro recuperaram um pouco deste olhar.

"Os Mercenários" tem Sylvester Stallone como produtor, ator, roteirista e diretor, fazendo dele um dos casos mais estranhos de "cinema autoral" de todos os tempos. A seu lado temos astros da pancadaria como Jason Statham, Jet Li, Dolph Lundgreen, Steve Austin e Randy Couture, além de Mickey Rourke e Eric Roberts. E há uma cena que seria bem mais interessante se o trailer não a tivesse mostrado tanto, que junta na mesma tela Sylvester Stallone, Arnold Swarzenegger e Bruce Willis. Stallone e Swarzenegger eram "rivais" do cinema brucutu com seus Rambos, Comando, Conan, Rocky e Exterminador. Bruce Willis foi lançado ao estrelato com a série "Duro de Matar", também retomada recentemente.

Em meio a todo este "renascimento" oitentista fica difícil imaginar um roteiro que fosse de alguma forma original, e o que Stallone apresenta em "Os Mercenários" é rigorosamente clichê. Os mercenários do título são contratados por um homem misterioso (Bruce Willis) para derrubar (em outras palavras, matar) um ditador de uma ilha na América Central. O grupo de Stallone vai até a ilha e ele é recebido por uma bela mulher local, interpretada pela brasileira Giselle Itié. Tanto o ditador quando seus homens são patéticos, abusando da população local e servindo de capacho para um ex-agente da CIA interpretado por Eric Roberts.

E não há muito mais o que falar do roteiro. Há as perseguições, cenas de luta e tiroteio esperadas. Em alguns momentos se tenta explorar o carisma do elenco (sendo que Statham e Jet Li são os que se saem melhor). Mickey Rourke faz uma espécie de figura paterna, o homem sábio a quem Stallone recorre quando precisa filosofar sobre a vida. É na oficina de tatuagem de Rourke, aliás, que todos se reúnem para agir como "homens", falar alto, exibir os músculos e brincar com facas. Várias sequências foram filmadas no Brasil e, recentemente, Stallone cometeu uma gafe ao querer elogiar o país; muitos, sofrendo de complexo de vira-lata, ficaram ofendidos, prometendo boicotar o filme. A julgar pela sala lotada, isso foi esquecido.


sábado, 7 de agosto de 2010

Brilho de uma Paixão

A vida amorosa na Inglaterra do século XIX é quase tão difícil de entender, hoje, quanto o modo de vida da época. "Brilho de uma paixão", escrito e dirigido por Jane Campion (de "O Piano"), é bem sucedido em descrever os dois. Em uma época antes da energia elétrica e cheia de convenções sociais, o destino de uma mulher de posses era aprender francês, dança, costura e aguardar o pretendente certo. Fanny Browne (Abbie Cornish) não concordava com essas idéias. Inteligente e decidida, ela costurava as próprias roupas, de estilo "moderno", e não tinha medo de expor suas opiniões. Ela desprezava a obra de um poeta chamado Charles Brown (Paul Schneider), amigo e mecenas do jovem John Keats (Ben Whishaw). Keats publicou seus primeiros poemas, mas foi massacrado pela crítica. Fanny Browne compra o livro dele e reconhece seu talento.

Aos poucos, e seguindo as rígidas convenções da época, um romance platônico se estabelece entre os dois. Campion enche a tela de imagens de grande beleza enquanto Fanny e Keats passeiam por jardins floridos, conversam, flertam e, mais tarde, trocam cartas de amor. Como é bom ver um filme que celebra a arte e a beleza das palavras. Uma paixão cada vez maior cresce entre os dois jovens mas, apesar do idílio presente, o futuro não é muito promissor. Keats não tem dinheiro e seus poemas não vendem. Ele vive dos recursos do amigo Brown, que o trata mal e tem ciúmes da atenção que ele dá a Fanny.

Como todo bom poema romântico, a história de Fanny e Keats está fadada a passar pelas dores da paixão. Visualmente, o filme acompanha a decadência da saúde do poeta, e os campos floridos dão lugar a paisagens frias, chuva e neve. Keats contrai tuberculose, o que significava uma sentença de morte no século XIX, e os colegas juntam dinheiro para mandá-lo à Itália, o que significaria a separação de Fanny. Aos olhos dos relacionamentos de hoje, os impedimentos à união do casal parecem absurdos, mas eram os costumes da época. Por quase três anos Fanny Browne e John Keats dividiram o mesmo teto, já que Keats e o amigo eram inquilinos da família de Fanny. Ainda assim, o relacionamento entre eles se manteve casto. Campion representa isso visualmente, colocando barreiras como janelas e paredes entre o casal. Quando Keats fica realmente doente e ele tem que passar alguns dias sob os cuidados de Fanny e sua mãe, eles se tornam noivos para não causar embaraços.

John Keats morreu em 1821, na Itália, aos 25 anos, e é considerado um dos maiores poetas românticos da literatura inglesa. O filme de Campion consegue a difícil tarefa de passar das palavras escritas para a imagem em movimento. Destaque deve ser dado à atriz infantil Edie Martin, que interpreta Toots, irmã de Fanny, que rouba algumas cenas. "Brilho de uma Paixão" está em cartaz, em Campinas, no Topázio Cinemas.


sexta-feira, 6 de agosto de 2010

A Origem

É um sonho. Você não sabe como foi parar lá. Enquanto ele acontece, parece tão real que você sente as mesmas dores, medos, alegrias, frustrações e desejos de quando está acordado. Ao mesmo tempo, há "algo" que lhe diz que não é verdadeiro. A cronologia é bagunçada. Você é capaz de feitos incríveis, como voar ou conquistar aquela pessoa que deseja. E quem nunca acordou assustado ao sonhar que estava caindo?

Todas estas situações, e muito mais, são usadas pelo diretor Christopher Nolan na criação de "A Origem". Nolan sempre gostou de desafios. Em "Memento" (2000) ele contou uma história ao contrário, com o filme partindo do final e indo para o começo. Em "Insônia" (2002) ele explorou a estranha investigação de um crime em um lugar em que nunca anoitecia. Em "O Grande Truque" (2006), a rivalidade entre dois mágicos é levada às últimas consequências. Nolan também foi o responsável pela volta do Homem Morcego nas versões sombrias de "Batman Begins" (2005) e "O Cavaleiro das Trevas" (2008). Seu enorme sucesso lhe permitiu produzir este roteiro ambicioso, de própria autoria, que lida com o mundo dos sonhos e do subconsciente.

Leonardo DiCaprio é Cobb, um especialista pago para invadir o sonho de pessoas para, através de manipulação ou intimidação, roubar informações. Seu próprio subconsciente carrega um problema, um trauma causado pela morte de sua esposa, Mal (Marion Cotillard), que invariavelmente acaba invadindo seus sonhos e atrapalhando a missão. Cobb não realiza as operações sozinho. Ele precisa da ajuda de outros especialistas, como uma "Arquiteta" (Ellen Page, a eterna "Juno"), responsável por criar o ambiente em que o sonho se passa. Há também o "Químico" (Dileep Rao), responsável por fazer a equipe dormir através de drogas de potências variadas. Há especialistas em se passar por outras no subconsciente da pessoa "invadida", e assim por diante. Há várias influências de "Matrix" (que já era um pastiche de várias fontes pop, como o livro "Neuromancer", de William Gibson) no roteiro. Mas "Matrix" influenciou mais na composição da equipe de DiCaprio do que propriamente no conceito de viver em uma realidade alternativa. Nolan poderia ter feito um filme voltado somente para o lado psicológico do ser humano, mas deve-se levar em conta seu lugar como diretor de filmes de massa, com a necessidade de entreter a parte da platéia que, lá pelo meio do filme, já não está entendendo mais nada.

Assim, pondo um pouco de lado e aceitando esse lado comercial do filme (que envolve perseguições e tiroteios, esperados em um filme de ação), o roteiro de Nolan é inteligente. Não contente em escrever uma história que se passa dentro do sonho de uma pessoa, "A Origem" mergulha em diversos níveis de sonho dentro de sonhos, cada um influenciado pelos acontecimentos do nível superior. Assim, como acontece na vida real, estímulos externos como movimentos bruscos ou ruídos afetam o que acontece no sonho, o que rende situações incríveis. Como se isso não bastasse, Nolan ainda usa o princípio de que, no sonho, o tempo parece passar mais devagar do que na vida real. Quem nunca cochilou por apenas cinco minutos e passou por um sonho que parece ter durado horas? Assim, o roteiro envia Cobb e sua equipe para dentro de diversos níveis de sonhos na mente de Robert Fischer (Cillian Murphy), herdeiro de um império empresarial que um rival (Ken Watanabe) quer destruir. Dentro de cada nível do subconsciente o tempo demora mais para passar, e todos devem ser sincronizados em um momento chave em que um acontecimento brusco pré-programado vai acordar os participantes e trazê-los de volta à realidade.

Há alguns detalhes que parecem ter sido criados para provocar o subconsciente do espectador. A música usada para acordar os "viajantes" é "Non, je ne regret rien" (Eu não me arrependo de nada), música de Edith Piaf que foi interpretada pela mesma Marion Cotillard que faz a esposa problemática de DiCaprio. O próprio DiCaprio interpretou um homem traumatizado pela morte da esposa em "Ilha do Medo", de Martin Scorsese. Coincidência? (Falando em música, deve-se lamentar a trilha sonora de Hans Zimmer, que toca sem parar por quase todo filme, que ganharia com um pouco mais de silêncio).

Crítica e público debatem a suposta genialidade de Christopher Nolan desde "Memento" e a balança, por enquanto, ainda pende para o lado do diretor. Seu maior problema é a tendência de querer explicar cada detalhe do que coloca na tela, em diálogos expositivos que soam artificiais demais. Nolan pode não ser um Kubrick (que também não era perfeito), mas na baixa criatividade e originalidade do cinema atual, sem dúvida ele está acima da média.