quinta-feira, 22 de julho de 2010

7º Dia: III Festival Paulínia de Cinema

Terminou ontem a fase competitiva do III Festival Paulínia de Cinema. Hoje será exibido o filme “400 contra 1”, de Caco Souza, fora de competição, e serão anunciados os vencedores. O Theatro Municipal de Paulínia estava com lotação esgotada, neste último dia aberto ao público, que teve a exibição do ótimo documentário “Lixo Extraordinário”, que foi aplaudido em pé, e o longa de ficção “Bróder”, de Jéferson De.

A animação de bonecos “Dona Tota e o Menino Mágico”, de Adriana Meirelles, tem visual bem colorido e animação básica. A diretora fez mestrado em animação na University of West of England, e disse que o curta foi animado “à distância” por diversas pessoas, em várias partes do mundo. O resultado é um trabalho irregular, com animação simples e diálogos difíceis de se entender.



Lixo Extraordinário” comoveu o público com sua inspirada mistura de histórias de vida, biografia de um artista e projeto ecológico. O documentário, dirigido a seis mãos por João Jardim (Janela da Alma), Karen Harley e Lucy Walker, é uma co-produção entre a produtora brasileira O2 Filmes (de Fernando Meirelles) e da britânica Almega Projects. O artista plástico brasileiro mais bem sucedido no momento, o paulista Vik Muniz, resolveu fazer um projeto no aterro sanitário Jardim Gramacho, no Rio de Janeiro, o maior da América Latina, fotografando alguns personagens e criando suas famosas obras de arte feitas com material reciclado. Vik é visto em Nova York, onde mora e tem um estúdio, mostrando o lugar onde ele mesmo, anos atrás, trabalhou limpando o lixo. Em seguida, o contraste: hoje suas obras estão expostas no MOMA, o museu de arte moderna de Nova York.

Vik e o sócio Fábio vão para o Brasil e é interessante como eles, ao chegar ao aterro de Gramacho, parecem estrangeiros no próprio país. Gramacho é um mundo à parte, com um fluxo constante de caminhões despejando lixo, urubus voando e, em meio à montanha de dejetos, seres humanos, os catadores de lixo. Dentre as centenas de trabalhadores, Muniz escolhe alguns personagens. Tião e Zumbi são da Associação dos Catadores de Lixo, e Zumbi sonha em montar uma biblioteca comunitária com os livros encontrados diariamente no aterro. Tião fala com desenvoltura sobre o “Príncipe”, de Maquiavel, que leu depois de deixar o livro molhado secando atrás da geladeira do barraco onde mora. Ísis está no aterro há cinco anos e acha o trabalho “péssimo”, mas é melhor do que “rodar bolsinha” na praia. Com lágrimas nos olhos, ela fala sobre a morte do filho de três anos, vítima de pneumonia. Suelen tem 18 anos e trabalha desde os sete. Já tem dois filhos pequenos que vê uma vez a cada 15 dias, porque mora em um barraco alugado no próprio lixão. Até o final do documentário, ela engravida novamente e tem o terceiro filho. Irmã trabalha no aterro e é cozinheira para os companheiros. É chocante a cena em que a vemos cozinhando em pleno lixão, cercada por dejetos por todos os lados.

Vik Muniz tira fotos destes personagens e os leva para um grande galpão, onde os próprios fotografados e colegas montam suas imagens em gigantescas obras de arte que, vistas de cima, se revelam. Muniz disse ao público presente ao festival, antes da exibição do filme, que o documentário era sobre “reciclagem humana” e sobre o poder transformador da arte. É emocionante a seqüência em que Muniz leva Tião a uma casa de leilão em Londres para vender sua própria foto. O dinheiro arrecadado por todas as obras foi revertido depois para a própria comunidade, mudando a vida dos catadores de lixo.

“Lixo Extraordinário” tem excelente direção de fotografia e trilha sonora de Moby, especialmente eficiente nas cenas que mostram as toneladas de lixo sendo despejadas no aterro, atacadas imediatamente pelos catadores. Causa certa estranheza, apenas, o fato de que Vik e seu sócio, dois brasileiros, conversem entre si em inglês quase o tempo todo. Isso foi feito para as platéias internacionais, claro, mas soa um pouco irreal. É também levantada a questão de como esse projeto iria afetar os próprios catadores. Muniz é enfático; se o projeto causar uma mudança de atitude nos envolvidos, querendo uma vida melhor, melhor para eles. Tião e Zumbi estavam presentes em Paulínia, e o discurso de Tião foi igualmente emocionante. Ele disse que eles não são catadores de lixo, mas de material reciclável. “Lixo é o que ninguém quer”, diz ele, enquanto que material reciclável tem valor. O documentário foi aplaudido em pé durante todos os créditos finais, e os aplausos continuaram quando as luzes do teatro foram acesas. É o novo favorito do Festival de Paulínia.



Ensolarado”, de Ricardo Targino, também chamou a atenção pelo discurso do diretor antes da sessão. Ele disse que fez o filme “à moda antiga”, em película de 35 mm e editado mecanicamente, na moviola. Targino disse que “nosso cinema tem um compromisso estético, político, afetivo e familiar com este grande Brasil”. Disse também que era uma alegria apresentar à pequena Ariane, a atriz mirim do curta, o cinema pela primeira vez. Ele chamou o filme de “uma pequena sementinha que estamos plantando neste país ensolarado”. O curta realmente é bastante bonito, com fotografia que mostra a força do Sol no sertão de Minas Gerais e enquadramentos primorosos. Depois de várias exibições de curtas digitais nos últimos dias foi bom ver a boa e velha película cinematográfica na tela.

Um segundo curta na categoria “Curta Nacional” foi exibido ontem, “Retrovisor”, de Eliane Coster. Também em 35 mm, o filme mostra a vida de um garoto (Douglas Valdez) que limpa pára-brisas no semáforo, em São Paulo. Um dia um fotógrafo deixa cair um rolo de filme na rua e o garoto o pega. Ele fica imaginando o que haveria dentro daquele rolo. O curta resgata algo de “mágico” que a fotografia digital nos tirou: a expectativa de fotografar sem poder ver na hora o resultado. Claro que as câmeras fotográficas digitais são muito mais práticas, mas havia algo de mágico em usar o filme tradicional e esperar a “revelação” (palavra com vários significados) das fotos.

O último longa-metragem de ficção exibido no festival foi “Bróder”, de Jeferson De. O filme foi feito no Capão Redondo, na periferia de São Paulo, e acompanha um dia na vida de três amigos, Macu (Caio Blat), Jaime (Jonathan Haagensen) e Pibe (Sílvio Guindane). Jaime é um badalado jogador de futebol que estava jogando na Espanha, mas está contundido, sendo dúvida para a escalação da seleção brasileira. Ele está em São Paulo para uma avaliação médica e para tentar se acertar com Elaine (Cíntia Rosa), que está grávida dele. Pibe é formado em Direito e se mudou da periferia para o centro da cidade. Ele se casou e tem um filho pequeno, mas a vida não está nada boa para o casal. Macu, branco, está fazendo aniversário e sua mãe (Cássia Kiss), lhe prepara uma festa surpresa. Ele está devendo dinheiro para um traficante barra pesada e precisa fazer um trabalho para quitar sua dívida. Os três amigos se reencontram no Capão Redondo em uma cena insólita, em que o carrão do jogador Jaime contrasta com a pobreza do lugar e com o fato de haver um corpo jogado na calçada, com a família aos prantos.

Jeferson De brinca com a questão do que é ser negro ou branco em uma periferia. Quando o filme começa, por exemplo, vemos uma silhueta falando ao celular, usando de muitas gírias, e imaginamos na hora ser um personagem negro. Quando a cortina deixa a luz entrar, vemos que é Caio Blat. Cássia Kiss, branca, interpreta uma mulher evangélica que freqüenta uma igreja cujo pastor e João Acaiabe, negro, e é casada com Aílton Graça, outro ator negro. Como se vê, a pobreza não tem cor. Mas há uma cena que mostra o preconceito ainda existente na sociedade. Quando Macu, Jaime e Pibe estão “dando um rolê” pela cidade no carrão de Jaime, a polícia os para e começa a prender os dois negros, achando que estavam seqüestrando o branco.

A trilha sonora tem sucessos de Mano Brown e Jorge Ben Jor, entre outros, e o filme soa bastante autêntico. A produção contou com o apoio de ONGs do Capão Redondo que garantiram que quase todo o filme fosse rodado no próprio bairro. Os atores estão muito bem e Caio Blat, em especial, surpreende. Interessante também a coincidência da história de Jaime, jogador de futebol que engravidou uma moça de periferia, e as notícias do goleiro Bruno e a antiga amante. Belo filme, que muda um pouco o cenário das tradicionais favelas do Rio de Janeiro para a periferia de São Paulo, igualmente perigosa e cheia de histórias para contar.


Nenhum comentário: