terça-feira, 29 de junho de 2010

Em busca de uma nova chance

Há uma cena no começo de "Em busca de uma nova chance" que é a melhor do filme. No banco traseiro de um carro, ao centro, Pierce Brosnan, com seus olhos azuis em desespero contido, olha ora para a esposa à direita (Susan Sarandon), ora para o filho à esquerda. Eles são o que sobrou de uma família. Estão voltando do enterro do filho mais velho, Bennett (Aaron Johnson), morto em um acidente de carro estúpido. Ele estava parado no meio da rua, criando coragem para declarar seu amor por Rose (a adorável Carey Mulligan, de "Educação"), com quem havia dormido pela primeira vez. O plano dura alguns minutos, mas nele vemos a figura do Pai, tentando imaginar o que vai ser do futuro da sua família, o distanciamento alienado da Mãe e a indiferença (induzida por drogas) do irmão mais novo.

"Em busca de uma nova chance" é daqueles filmes que poderiam ir direto para o Supercine, no sábado à noite, não fosse pela qualidade do elenco. Este é um filme assumidamente dramático, daqueles que lembram exemplos dos anos 80 como "Laços de Ternura" ("Tears of Endearment", 1983) ou, mais especificamente, "Gente como a Gente" ("Ordinary People", 1980), dirigido por Robert Redford. Deste último, a roteirista e diretora Shana Feste se apropriou de vários elementos, como a morte do filho mais velho, herói na escola e atleta, a frieza da mãe (vivida por Mary Tyler Moore), a tentativa do pai (Donald Sutherland) de manter a família unida e os problemas do filho mais novo (Timothy Hutton), tendo que lidar com o fato de sempre ter ficado em segundo lugar na atenção de todos.

A estes dados, todos presentes em "Em busca de uma nova chance", a roteirista adicionou o fato de que a namorada de Bennett, Rose, aparece nesta família em ruínas e anuncia uma surpresa: ela está grávida de Bennett. Sozinha no mundo (a mãe tem problemas mentais e vive em instituições), Rose pede para ficar com eles até o nascimento do bebê, que ela não quer abortar. Allen (Pierce Brosnan, muito bem como sempre) vê em Rose uma chance de superar a morte do filho e tocar a vida para frente, o que é visto por Grace (Susan Sarandon, idem) como uma afronta à memória de Bennett. Ryan (Johnny Simmons), o filho mais novo, começa a frequentar um grupo de auto-ajuda e conhece Ashley (Zöe Kravitz), uma garota com mais problemas do que aparenta.

Sim, o filme é cheio de clichês dramáticos, mas é bom ver um drama humano de vez em quando na tela do cinema. A diretora leva o filme com delicadeza e não abusa n0 "açúcar". Carey Mulligan, que foi indicada ao Oscar de Melhor Atriz por seu papel em "Educação", faz aqui um trabalho bem diferente, mas igualmente bom. De cabelos curtos e mais vulnerável, ela é a parte mais "saudável" de toda a família, tentando criar uma imagem do quase desconhecido pai de seu filho. Brosnan é um dos produtores, tendo criado uma boa carreira pós 007.


domingo, 27 de junho de 2010

O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus

Terry Gilliam é um diretor singular. Americano, é frequentemente confundido como inglês, por ter participado do grupo humorístico britânico Monty Pyton e ter dirigido alguns filmes deles, como "Monty Pyton e o Cálice Sagrado" (1975). Dotado de uma imaginação exuberante (e mais anárquica do que, digamos, Tim Burton), Gilliam é também animador e diretor de arte, com um estilo bastante rococó e influências do teatro. Fez alguns dos filmes mais interessantes, ricos e mesmo polêmicos dos últimos trinta anos, como "Bandidos do Tempo" (1981), "Brazil - O Filme" (1985) e "As Aventuras do Barão Munchausen" (1988). Também flertou com produções mais comerciais, como os ótimos "Pescador de Ilusões" (1991), com Robin Williams e Jeff Bridges e "Os Doze Macacos" (1995), com Bruce Willis e Brad Pitt.

Em 2007, Gilliam começou a produção de seu mais novo filme, "O Mundo Imaginário do Dr. Parnassus", que é bastante influenciado pelo seu próprio "Barão Munchausen", com Christopher Plummer e Heath Ledger no elenco. Como se sabe, Ledger foi encontrado morto em janeiro de 2008, o que aparentemente sepultou o filme com ele. Algum tempo depois, porém, Gilliam fez algumas modificações no roteiro e, com a ajuda de amigos como Johnny Depp, Jude Law e Colin Farrell, além de muitos efeitos especiais, conseguiu completar o filme, que termina com a assinatura "Um filme de Heath Ledger e Amigos". O resultado é uma obra difícil de classificar. "Dr. Parnassus" tem toda a exuberância esperada de Terry Gilliam, com um visual barroco e uma trama ambiciosa e complicada. Por outro lado, ele demora a engrenar e, em alguns momentos, parece o trabalho de um editor maluco brincando de colar sequências aleatoriamente.

Christopher Plummer (excelente) é o Dr. Parnassus, um homem que fez um pacto com o Diabo (Tom Waits) para se tornar imortal. Em troca, o Diabo exigiu que ficaria com qualquer filho que Parnassus porventura tivesse. Parnassus tem uma filha, Valentina (Lily Cole, uma mistura de inocência e sensualidade) que, como nos contos de fada, seria sua até os 16 anos de idade, quando deveria ser entregue ao Diabo. O Dr. Parnassus tem mais de mil anos de idade e hoje vaga pela Inglaterra em um palco ambulante com a filha, um anão (o ótimo Verne Troyer, com as melhores frases do filme) e um ajudante chamado Anton (Andrew Garfield). Não fica muito claro exatamente o que eles oferecem em seu show ambulante, mas há um espelho mágico no palco que, quando atravessado, leva ao tal "imaginário do Dr. Parnassus", um mundo em constante mutação transformado pelas vontades de quem entra nele. A este grupo mambembe se junta Tony Shepherd (Heath Ledger), um pilantra que eles encontram enforcado (mas não morto) em uma ponte de Londres.

Ledger, aparentemente, havia filmado todas as suas cenas fora do mundo imaginário, de modo que, com sua morte, foi substituído inteligentemente por Depp, Law e Farrell nas cenas mais extravagantes do filme, passadas do outro lado do espelho e dentro da mente do Dr. Parnassus. Depp é extraordinário e rouba o filme nos poucos minutos em cena. Law é apenas correto mas Farrell é o que encarna de forma mais realista a persona de Ledger.

O roteiro (do próprio Gillian e Charles McKeown), ambicioso, mistura elementos da mitologia grega (Parnassus é inspirado no Monte Parnaso, na Grécia, que influenciou o movimento da "arte pela arte", o Parnasianismo), filosofia budista, católica e mais uma dezena de citações. Mas o produto não é livre de problemas. Como disse, a edição é por demais caótica em várias sequências e a trama, já complicada, demora a ser exposta e desenvolvida. O mundo imaginário, uma mistura de efeitos especiais em computação gráfica com tradicionais modelos em escala, varia do sublime ao cafona. O elenco é irregular, sendo que o mais fraco é o personagem Anton, de Andrew Garfield. Mas, sem dúvida, é um filme ambicioso, que evoca velhos rituais sobre o modo de se contar histórias e sua importância para, como explica uma frase do filme, manter o Universo funcionando.


domingo, 20 de junho de 2010

Aproximação

Juliette Binoche é uma força da natureza. O trabalho dela em "Aproximação", filme de 2007 dirigido por Amos Gitai, é excepcional. A atriz símbolo do cinema francês passa por uma transformação impressionante diante de nossos olhos, de uma francesa aparentemente fútil para uma mulher em busca de sua filha na Faixa de Gaza.

Binoche é Ana, mulher que perdeu o pai, na França, mas que está feliz com a chegada do meio-irmão Uli (Liron Evo), um israelense. O corpo do pai repousa em um grande apartamento francês enquanto Ana fica provocando o meio-irmão, dando entrevistas a jornalistas sobre o pai e tentando forjar o testamento para que Uli fique com tudo. A executora dos bens, no entando, lhe revela que o pai havia decidido deixar tudo para uma filha que Ana teve vinte anos antes, mas havia abandonado em um kibutz, em Israel. Uli, um oficial israelense, revela que precisa voltar para participar da desocupação de ocupantes ilegais judeus na Faixa de Gaza, e Ana decide ir com ele procurar a filha.

A viagem leva Ana e o espectador para a constante zona de conflito entre judeus e palestinos. Em montagens paralelas, vemos de um lado Ana, sozinha e sem saber falar hebraico, tentando achar a filha enquando Uli treina, com outros soldados israelenses, para a desocupação. Amos Gitai filma com extrema elegância, em planos sequência longos que deixam a ação se desenrolar diante da câmera, que apenas contempla a ação. O que dizer desta situação entre judeus e palestinos? O filme não toma partido, mas mostra claramente como a situação é absurda. Os israelenses treinam com afinco técnicas de invasão e intimidação, para tirar outros israelenses das terras ocupadas. Ana, uma francesa de origem judaica que não conhece nem a própria língua, é o retrato do resto do mundo, perdido e sem entender o que realmente acontece na região. O encontro com a filha é doce e contido, sem pieguices nem dramalhões desnecessários. Mas o tempo é curto, já que os soldados estão às portas, prontos para invadir. Do outro lado da cerca, apenas por um momento, em um plano curto, vemos os palestinos gritando as mesmas palavras de ordem e clamando o mesmo direito pela terra que os judeus deste lado do arame. Quem está certo? Estarão todos errados? O fato é que a sequência final, filmada por Gitai, novamente, em longos planos, é de uma força arrasadora. O filme toma força maior neste momento, em que Israel invadiu navios de uma força de paz que estaria levando suprimentos para a Faixa de Gaza, matando vários ocupantes.

Vale um comentário sobre o começo do filme. Em um único plano (que não tem nada a ver com o resto do filme, aparentemente), um homem judeu pede um cigarro para um mulher palestina e os dois conversam. Ela se declara holandesa-palestina, enquanto ele se diz francês-judaico (e mais uma dezena de nacionalidades). Um oficial do trem lhes pede os passaportes e estranha que estejam conversando. O homem lhe diz que não há nada para se preocupar, eles são apenas um homem judeu e uma mulher palestina, conversando. E por que não poderia ser simples assim?


O Escritor Fantasma

Bom ver um filme adulto, bem atuado e interpretado nos cinemas. Ainda por cima, dirigido por um mestre como Roman Polanski, exilado na Europa há anos para fugir da justiça americana, que o condenou por estupro em 1977. A situação pessoal do cineasta acaba, de certa forma, refletindo em sua obra. Em "O Escritor Fantasma", Pierce Brosnan interpreta Adam Land, um ex Primeiro Ministro britânico que está exilado nos Estados Unidos sob acusações de crime de guerra. Ele teria auxiliado a CIA a sequestrar e torturar supostos terroristas da Al Qaeda, e enfrenta agora uma acusação no Tribunal de Haia. O filme faz claras referências a Tony Blair, considerado mero lacaio de George W. Bush ao apoiá-lo na invasão ao Iraque e em outras situações.

Mas o protagonista do filme não é Brosnan, mas Ewan McGregor, que interpreta um "ghost writer", aquele escritor anônimo que é contratado para escrever em nome de alguém. Ele não estava muito interessado no trabalho, mas seu agente lhe consegue um contrato polpudo e ele parte para uma ilha fria na costa leste dos Estados Unidos, onde o Primeiro Ministro está exilado. McGregor não é o primeiro ghost writer de Lang. O anterior morreu afogado em circunstâncias suspeitas, quando teria caído, bêbado, da balsa que o transportava da ilha para o continente. Na ilha também está a bela esposa de Lang, Ruth (Olivia Williams), a quem o primeiro ministro recorre em todas as decisões políticas. Mas, aparentemente, em questões sexuais ele favorece sua secretária particular, Amelia (Kim Cattrall), que cuida da sua agenda e do precioso manuscrito original da autobiografia de Lang, iniciado pelo antigo ghost writer. McGregor se vê cada vez mais envolvido com os problemas de Lang, além de ter que lidar com o "fantasma" do escritor que está substituindo e o assédio perigoso de Ruth, a mulher do Primeiro Ministro.

Polanski dirige com precisão e suspense, sem perder o bom humor. O roteiro é complicado, envolvendo conspirações políticas, segredos antigos guardados a sete chaves, traições pessoais e políticas e um personagem principal que, como convém a um ghost writer, nem mesmo tem nome. McGregor está muito bem neste personagem que, no fundo, não é muito inteligente e é curioso demais para seu próprio bem. Como todo bom filme de suspense, a técnica de Polanski evoca Alfred Hitchcock em várias sequências, principalmente em um belo plano que mostra um bilhete sendo passado de mão em mão até chegar a seu destino. O final é apropriadamente cínico.

Bom filme, que evoca os tempos em que se dependia de um bom roteiro e técnica cinematográfica para envolver o espectador.


Toy Story 3

Incrível pensar que o primeiro "Toy Story" estreou no cinema há quinze anos. A tecnologia da Pixar, aliada a sua quase infalível habilidade de contar histórias, é tão boa, que o primeiro filme, assim como sua continuação, parecem tão bons hoje quanto em 1995. Talvez por isso, e pela grande venda de DVDs, que os filmes conseguiram conquistar novos fãs entre adultos e crianças e lançar agora outra continuação.

"Toy Story 3" vem em 3D, como dita a nova "moda" hollywoodiana, para continuar a história do caubói de brinquedo Woody (Tom Hanks, no original), seu companheiro astronauta Buzz Lightyear, e os outros brinquedos de Andy, que agora cresceu, está com 17 anos e de partida para a universidade. Há anos ele não dá atenção a seus brinquedos, que estão largados em um baú em seu quarto, que ainda tem o mesmo papel de parede azul com estrelinhas. Como já havia sido dito em "Toy Story 2", a missão de vida de um brinquedo é dar alegria a seu dono, e os bonecos estão carentes da atenção de Andy. O que ele vai fazer com eles, agora que está de partida? Vai doá-los a uma creche? Vai jogá-los no lixo? Vai levá-los para a faculdade?

Após algumas confusões, os bonecos acabam indo parar mesmo em uma creche. A princípio eles acham que estão no paraíso. Afinal, lá está cheio de crianças para brincar com eles, e o melhor, quando elas crescerem, outras crianças tomarão seu lugar. O único que não está satisfeito é o caubói Woody, sempre fiel, que foge para encontrar Andy. A creche acaba se revelando uma prisão cruel liderada por um urso de pelúcia chamado Lotso, que é auxiliado pelo boneco Ken (vítima de várias piadas sobre gays), um bebê de brinquedo e o resto da gangue "do mal".

Os primeiros "Toy Story" foram concebidos e dirigidos por John Lasseter, o "cabeça" por trás da Pixar. Este tem apenas a história baseada em uma idéia de Lasseter, sendo dirigido por Lee Unkrich. As crianças sem dúvida vão adorar e o filme tem recebido boas críticas, mas não é a mesma coisa. Há menos atenção aos personagens e mais em criar cenas muito bem feitas pelos técnicos em computação gráfica, como uma sequência inicial simulando a imaginação de Andy e outra passada dentro de uma usina de lixo que lembra os bons tempos de Indiana Jones. Mas o roteiro é fraco, praticamente com a mesma premissa de "Toy Story 2", em que Woody era "sequestrado" por um colecionador e tentava voltar para o dono com a ajuda dos amigos. O urso Lotso é uma versão reciclada do boneco "Mineiro", do filme anterior, e repetem de novo a piada de Buzz Lightyear achar que é um astronauta de verdade.

Mas há um final bastante emotivo, em que vemos Andy, crescido, tendo que decidir o futuro de seus brinquedos. Como curiosidade, há uma menina que tem um boneco do personagem Totorô, criação do mestre japonês Hayao Miyazaki, grande influencia dos animadores da Pixar.


domingo, 6 de junho de 2010

Mary e Max - Uma Amizade Diferente

Em 2003, Adam Elliot ganhou o Oscar de Melhor Curta Metragem de Animação (além de vários outros prêmios, inclusive o Animamundi do Rio de Janeiro) com "Harvie Krumpet", uma história agridoce sobre um personagem com problemas mentais, todo feito com a técnica da "animação de massinhas" (ou claymation). Veja o curta no final deste texto.

Os prêmios e o prestígio conseguidos com o curta abriram caminho para a produção do longa metragem "Mary e Max - Uma Amizade Diferente", em cartaz no Cine Topázio de Campinas. Elliot é daqueles animadores que vão contra a corrente da computação gráfica e, assim como seus colegas da Aardman Animation (a produtora inglesa responsável por Wallace & Gromit), ainda faz seus filmes de forma artesanal, movimentando bonecos e cenários milímetros por vez e fotografando quadro a quadro. O mundo de Adam Elliot é todo particular. Também ao contrário de animações "fofinhas" para crianças, ele cria um quadro bastante adulto (e muito bem humorado) da sociedade, expondo as neuroses do homem moderno, seus medos perante o mundo e um tom geral bem distante das animações estilo Disney (que cumprem seu papel). Tanto que "Mary e Max" é mostrado em versão legendada, destinado a adultos.

O humor negro e visão perturbadora da vida presente em "Harvie Krumpet" retornam em "Mary e Max". O filme toma emprestada a trama de "Nunca te vi, sempre te amei", de 1986, que contava a história de duas pessoas (Anne Bancroft e Anthony Hopkins), em cantos diferentes do globo, que por anos mantiveram uma amizade por meio de cartas. Mary Daisy Dinkle é uma garota de 8 anos que mora em uma cidade pequena na Austrália, com a mãe alcoólatra e o pai taxidermista. Ela tem uma marca de nascença de cor chocolate na testa, usa óculos de grau e é solitária. Sua visão de mundo é distorcida pela história da mãe, que lhe disse que ela foi um "acidente", e do avô, que lhe diz que os bebês são encontrador no fundo de canecas de cerveja. Um dia ela encontra uma lista telefônica de Nova York e, aleatoriamente, resolve escrever para uma pessoa, em busca de amizade. O escolhido é Max Jerry Horovitz, um judeu de 44 anos, obeso, solitário e com muitos problemas. Max explica a Mary que os bebês, nos Estados Unidos, não são encontrados em canecas de cerveja, mas nascem de ovos colocados por rabinos (se forem judeus), freiras (se forem católicos) ou por prostitutas (se forem ateus). Max, um leitor de ficção-científica que nunca dormiu com uma mulher, se considera ateu.

O filme é quase todo sem diálogos, composto pela narração de Barry Humphries e pelas vozes (nas cartas de Mary e Max), de Toni Collette e Philip Seymour Hoffman. O filme é lento e cheio de detalhes irônicos e sarcásticos. Max é um caso típido de depressivo das grandes cidades, solitário e com um problema de peso, do qual ele tenta se curar frequentando reuniões dos "Comedores Compulsivos Anônimos". Mary é a garota feia, tímida e impopular na escola. Ela gostaria de receber mais atenção do pai ausente e da mãe alcoólatra, mas só está feliz quando assiste sua série preferida na televisão, ao lado do galo de estimação e comendo uma lata de leite condensado. A vida de Mary, de oito anos, e a de Max, muito mais velho mas com a idade mental de uma criança, começa a mudar quando eles encontram finalmente um amigo através das cartas. Eles trocam experiências (distorcidas) de vida, receitas de sanduíches de chocolate e leite condensado e tentam, principalmente, encontrar conforto para a solidão.

A animação é elegante, com boa direção de fotografia e cenário rico em detalhes. Há piadas escondidas pelo roteiro e pelo cenário, como o fato do gato de Max se chamar HAL e ter apenas um olho (assim como o computador do filme "2001 - Uma Odisséia no Espaço").



Veja aqui "Harvie Krumpet", curta metragem de Adam Elliot:

Fúria de Titãs

Os deuses gregos sem dúvida eram divertidos. Zeus resolveu experimentar uma de suas criações e desceu à Terra para dormir com uma mortal, o que acabou gerando um filho bastardo, o semideus Perseu. O marido traído jogou o corpo da esposa e do bebê no mar, mas Perseu foi pescado por Spyros (Pete Postlethwaite), que o criou como se fosse o próprio filho. Durante as noites de tempestade, o jovem Perseu ficava olhando os raios e sentindo que, um dia, ele seria alguém importante.

"Fúria de Titãs" é um remake "bombado" do clássico de 1981 dirigido por Desmond Davis, que contava com os efeitos especiais do lendário Ray Harryhausen. O filme dos anos 80 tinha aquele charme de Sessão da Tarde, com os efeitos em stop motion (animação quadro a quadro) de Harryhausen que não passariam vergonha nos dias de hoje. Esta nova versão, dirigida por Louis Leterrier, tem todos os vícios dos blockbusters modernos. Sofreu um "upgrade" acelerado e mal feito para 3D (para aproveitar a moda e render melhor nas bilheterias) e tem a sutileza de um ataque de Kraken. Mas não é necessariamente ruim. Apenas sofre de uma seriedade fora de lugar em um filme de aventuras como este, e um ator principal (Sam Worthington, o novo "queridinho" dos filmes de ação, de Exterminador do Futuro e Avatar) que, com seu cabelo estilo militar moderno e seu sotaque australiano, não combina muito com o papel de um herói grego.

A trama é a mesma do filme de 81. Os humanos, cansados de servir aos deuses, declaram guerra contra Zeus (Lian Neeson, em figurino reluzente de desfile de escola de samba). Mas quem quer se aproveitar da situação é o deus dos subterrâneos, Hades (Ralph Fiennes, desperdiçando talento), que decide ameaçar a cidade de Argos com sua criação, o monstro gigante Kraken. Cabe ao semideus Perseu partir em uma jornada para consultar as bruxas sobre como derrotar o monstro. No caminho ele e seus companheiros lutam contra escorpiões gigantes, enfrentam a ira de Hades e, finalmente, devem ir ao mundo dos mortos tentar cortar a cabeça da Medusa, a única chance dos humanos de derrotar o Kraken.

O filme tem um visual interessante, mas é prejudicado por uma edição mal feita e por uma total falta de ritmo. Momentos que poderiam render grandes cenas, como a destruição da estátua de Zeus e a morte dos pais adotivos de Perseu, por exemplo, são desnecessariamente acelerados. Não há espaço para nenhuma sutileza ou elegância nos poucos segundos que separam as declarações blasfemas da rainha Cassiopéia e o aparecimento de Hades, furioso, que vem lhe tirar a juventude. E fica difícil entender, na verdade, porque os humanos acham que teriam qualquer chance em uma guerra contra os deuses. Há algumas poucas (mas boas) referências ao "Fúria de Titãs" original, como um aparecimento rápido da coruja de metal do primeiro filme e no design reptílico da Medusa (que, apesar de toda tecnologia digital, não é tão eficiente quanto a versão em stop motion de Harryhausen).

E se o elenco do filme dos anos 80 contava com monstros sagrados como Laurence Olivier no papel de Zeus, Lian Neeson e Ralph Fiennes não estão muito a vontade em suas versões olímpicas. Fiennes, que também é o arquivilão de Harry Potter, está devendo papéis melhores na telona há um bom tempo.

Como filme de aventura, "Fúria de Titãs" tem seus bons momentos e serve como diversão passageira. Como curiosidade em ver com se faziam as coisas há 30 anos, baixe o filme de 1981, ou espere pela próxima reprise na Sessão da Tarde.


sábado, 5 de junho de 2010

O Inferno de Henri-Georges Clouzot

O ciúme foi tema de grandes obras de arte. Do Otello de Shakespeare, envenenado com as fofocas de Iago, ao Bentinho de Machado de Assis, para sempre condenado pela suposta traição de Capitú, o assunto sempre gerou polêmica e interesse. O cineasta francês Henri-Georges Clouzot quis usar do tema para criar o que seria sua obra prima. Apropriadamente chamado de "O Inferno", o filme trataria do ciúme doentio de um homem chamado Marcel (Serge Reggiani) por sua esposa, Odette (Romy Schneider). Clouzot estava determinado a fazer um filme como nunca havia sido produzido antes e contava com o apoio financeiro internacional da Columbia Pictures, que lhe deu carta branca no orçamento. Não há nada mais noçivo a um criador do que recursos ilimitados. Clouzot mergulhou em experimentalismos visuais que pretendiam passar as sensações doentias do marido ciumento para a platéia. O filme teria cenas em preto e branco, representando o mundo "normal", e cenas de um colorido forte, representando os delírios de Marcel. O problema é que "O Inferno" nunca foi terminado. O perfeccionismo do diretor, aliado aos maus tratos aos atores (particularmente Reggiani), culminaram com o abandono do ator do set e até no enfarto do diretor, em plena filmagem.

O documentário foi produzido por Serge Bromberg e Ruxandra Medrea. Tudo teria começado casualmente, quando o elevador em que Serge estava ficou parado entre dois andares, em Paris. Junto com ele estava a viúva de Clouzot, e os dois passaram horas conversando sobre a obra-prima perdida do cineasta. O documentário conta com depoimentos de técnicos envolvidos com o projeto, como o cineasta Costa-Gravas, e farto material visual recuperado das horas de filmagem realizadas por Clouzot antes de abandonar o filme.

O que provavelmente aconteceu, dizem os entrevistados, foi uma combinação de genialidade misturada com megalomania, recursos ilimitados e um tema talvez pessoal demais para o realizador. Clouzot tinha manias de deixar qualquer um maluco, como acordar todos às duas da manhã para anotar suas idéias, ou exigir que trabalhassem aos domingos. Ele tinha o roteiro meticulosamente decupado, com story-boards de todas as cenas, detalhando até que lentes seriam usadas em cada plano. Costa-Gravas diz que este tipo de preparação não era bem vista pelos outros diretores franceses da nouvalle vague, adeptos de um cinema mais livre e improvisado. O documentário mostra dezenas de testes visuais feitos pela equipe de fotografia e efeitos visuais, que usaram lentes especiais, espirais, espelhos d´água e vários outros recursos para tentar recriar a mente doentia de um homem ciumento. A sensação que passa é que, por mais interessantes que algumas cenas sejam, o filme seria muito pesado visualmente, sem espaço para sutilezas. Talvez esta preocupação com o visual contribuiu para a perda de rumo do cineasta, que tinha três equipes de câmera à postos para filmar, mas que, geralmente, ficavam paradas à espera de cenas para rodar.

Documentário interessante para quem gosta dos bastidores do cinema e para conhecer este curioso episódio do cinema francês. Em pré-estréia no Cinema Topázio, em Campinas.