Quando ficamos sabendo, em "Notorious", de Alfred Hitchcock, que Ingrid Bergman terá que se passar por esposa de Claude Rains para espioná-lo, intelectualmente sabemos que ela vai ter que dormir com ele. Mas em um filme de 1946, isto é apenas um detalhe que, na verdade, não podia ser mostrado de fato.
Em um filme de 2007 de Ang Lee, o cinema e a sociedade mudaram o suficiente para que este "detalhe" não seja apenas insinuado. Homens e mulheres se relacionam sexualmente na vida real e, nos dias de hoje, também no cinema. O ato, e suas consequências físicas e psicológicas, mudam quando vemos com nossos próprios olhos. Assim, o sexo em "Desejo e Perigo" está no limite do explícito. Na prática, é bem possível que os atores Tony Leung e Tang Wei, assim como seus personagens, também levaram o ato até o fim.
Isso posto, "Desejo e Perigo" ("Lust, Caution", no original, que descreve perfeitamente o enredo) é muito mais do que sexo. Ang Lee, depois de ganhar o Oscar nos EUA por "O Segredo de Brokeback Mountain", está de volta à China para fazer um dos melhores filmes sobre espionagem, guerra e relacionamentos dos últimos anos. Ele é impecável na recriação da China ocupada pelos japoneses antes e durante a II Guerra Mundial, nos figurinos, na bela direção de fotografia de Rodrigo Pietro e na música de Alexandre Desplat.
O enredo trata da jovem estudante Wong Chia Chi (Tang Wei) que, ao entrar para um grupo de teatro, também se envolve com o movimento contra a ocupação japonesa. Seus colegas de teatro estão dispostos a matar um colaboracionista chinês chamado Yee (Tony Leung, sempre excelente) e eles trocam as peças de teatro por uma "peça" muito mais perigosa e mortal. Wong Chia Chi começa a interpretar o papel da "Sra. Mak", a esposa de um rico homem de negócios e, nesta condição, consegue se aproximar da família do Sr. Yee. O filme é extremamente detalhado em mostrar esta aproximação e também a enorme e reprimida paixão que surge entre ela e o Sr. Yee. As ações do resto do grupo também são detalhadas e, por vezes, ingênuas. Há uma cena de assassinato extremamente violenta que também me lembrou Hitchcock, quando o grupo literalmente suja as mãos de sangue pela primeira vez e descobre, a duras penas, que matar um homem não é tão fácil quanto parece.
Há uma passagem temporal para três anos depois, em 1941, e a Sra. Mak volta a assediar e espionar o Sr. Yee em Shanghai. É então que a atração entre eles se consuma de forma violenta e apaixonada. Ang Lee não quer simplesmente nos chocar com as cenas de sexo. Há no ato dos dois algo de desesperado, seja do lado da garota, que tem que se entregar a alguém que ela está tentando matar, seja do lado do chinês que desconfia de tudo e de todos. É como se os dois soubessem que, no fundo, são inimigos, mas há um fogo e uma atração entre eles que os levam ao limite do amor físico. Mas seria realmente apenas físico? É possível se entregar a tal ponto a alguém sem que haja sentimento? Por que a "Sra. Mak" se doa com tanta paixão ao inimigo mas mantém uma relação apenas platônica com seu companheiro de resistência?
O filme não foi bem nos Estados Unidos por causa da classificação NC-17 (geralmente associada a filmes pornográficos) e não repetiu o sucesso de filmes como "O Tigre e o Dragão" ou "Brokeback Mountain", mas Ang Lee venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza. Aqui no Brasil, chegou com dois anos de atraso. (Em Campinas, o filme está em pré-estréia no Topázio Cinemas.)
Irretocável.
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