domingo, 14 de junho de 2009

Budapeste

Para começar, o aviso obrigatório: não li o livro de Chico Buarque que deu origem a este belo filme de Walter Carvalho. Mas, terminada a sessão, uma visita à livraria mais próxima me permitiu folheá-lo e tirar algumas dúvidas sobre como, no livro, certas situações foram resolvidas, ou o quanto elas ficaram diferentes na tela.

Adstringente. Saudade. Pão de açúcar. Andorinha.

Este é um filme sobre palavras. É daquele tipo de obra que desafia um simples resumo de seu enredo. Nas competentes mãos de Carvalho, excelente diretor de fotografia (Central do Brasil, Cazuza, Lavoura Arcaica), ele se torna um filme sobre momentos, sobre sensações. José Costa (Leonardo Medeiros) é um ghost writer, aquele tipo de escritor que produz um livro anonimamente para os outros, que acabam levando a fama. Como diz um de seus clientes, para quem Costa escreve uma autobiografia, se ele tivesse tempo para escrever não teria tido tempo para viver. Costa é casado com Vanda (Giovanna Antonelli), uma apresentadora de telejornal que gosta da fama e que não entende a posição aparentemente subalterna do marido. Os dois têm um filho que tem problemas para falar. Parece o pai que, apesar de talentoso com as palavras, não consegue se expressar na própria voz.

Costa se apaixona por Budapeste, capital da Hungria, que conheceu quando o voo em que estava teve uma pane e teve de pousar. Ele diz que a cidade é "amarela", e a magnífica fotografia de Lula Carvalho (filho de Walter) a mostra em suaves tons dourados. Costa também se apaixona pela língua, tão difícil que dizem que até o Diabo a respeita. Ele assiste à televisão e tenta aprender algumas palavras, sem sucesso. É difícil saber quando uma termina e a outra começa. É então que ele conhece Kriska (Gabriella Hámori), uma bela húngara que resolve ensiná-lo a língua, mas não da forma tradicional. Há uma bela cena em que ela, de patins, corre pela cidade apontando as coisas e dizendo seus nomes, enquanto Costa corre atrás e vai repetindo. Fica claro que ele consegue se comunicar muito melhor com Kriska do que com a própria esposa, apesar deles não falarem a mesma língua. Isso tudo é visto no filme em húngaro e com legendas, o que me parece uma vantagem com relação ao livro (em que tudo era escrito em português). Há uma sonoridade estranha no incompreensível húngaro e o espectador se sente tão perdido quanto o personagem, apesar das legendas.

Como não poderia deixar de ser, o filme é magnificamente fotografado, e Carvalho faz um jogo de luzes e sombras que por vezes lembram seu documentário "Janelas da alma", em que explorava os limites da visão e sua diferente percepção entre as pessoas. Há uma grande quantidade de cenas de sexo e mulheres nuas, o bastante para chocar algumas moças que estavam no cinema comigo. Mas não é nada explícito nem necessariamente gratuito. É parte do espetáculo sensorial que é o filme. Para representar o distanciamento de Costa de sua esposa, por exemplo, há uma cena em que o vemos como que fora do próprio corpo, assistindo a si mesmo transando com a mulher. Já com Kriska é diferente, ao menos no início, quando eles ainda não entendem as palavras um do outro.

É um filme lento, provavelmente lento demais para o gosto médio do público que foi ver "A Mulher Invisível", por exemplo. Mas repare nos vários detalhes espalhados pelo filme. Veja com o tema do "contrário", do estar do avesso, ou nos bastidores da ação, é representado por várias imagens por toda produção. No relógio visto no espelho, ou em um mapa visto por trás, em uma vitrine, com as palavras ao contrário, da mesma forma como o biografado de Costa supostamente escrevia no corpo das mulheres. Ou reparem como o nome dele, José Costa, é pronunciado ao contrário na Hungria. Como a estátua de Lenin que se afasta até deixar o mundo, literalmente, de cabeça para baixo.


5 comentários:

Daniel Serrano disse...

bacana ler as impressões de quem entende de cinema e não leu o livro; tinha lido até agora coisas de quem já havia lido (que também achei interessantes), mas que não se permitiam esse distanciamento. valeu!

Fernando Vasconcelos disse...

oi
Solimeo, valeu ler mas achei o filme bem fraco, parece só existir em função do livro, que eu tanbém não li. O final em metalinguagem achei bem ruim, slavam-se alguns achados visuais, como a cena da estátua de Lenin. Mas esse só recomendo pros inimigos e pros fãs de Chico.

João Solimeo disse...

Valeu, Daniel, pelos comentários. De fato, não ter lido talvez tenha sido uma vantagem neste caso.

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Beleza, Fernando? Hmmm...não entendi direito o que vc quis dizer com "existir em função do livro". Digo, eu não o li e não tive problemas em aceitar e entender a história. A cena do Lenin é muito boa mesmo, embora tenha gente torcendo o nariz por ser uma homenagem a cena igual de um filme de Theo Angelopoulos (que pode ser vista no youtube aqui: http://www.youtube.com/watch?v=shf5o6G6Vdk ). A cena não existe no livro, assim como a outra estátua importante do filme, a do autor desconhecido. Em tempo: me confesso um ignorante em MPB em geral e Chico Buarque em particular.

Abraço!

Carol Pin disse...

Não li o livro, mais confesso que o filme me instigou a ler... sem palavras para a fotografia...

João Solimeo disse...

Carol, também fiquei com vontade de ler, mas talvez o livro não consiga passar justamente a sensação de um país diferente, da língua, etc que há no filme. A direção de fotografia é realmente incrível.
bjo