domingo, 12 de abril de 2009

Valsa com Bashir

Como funciona nossa memória? Por que é que, às vezes, um cheiro pode nos trazer lembranças de um tempo indeterminado no passado? E será que as coisas das quais nos lembramos aconteceram realmente ou são parte de nossa imaginação? E será que realmente nos esquecemos de alguma coisa ou só achamos que sim?

Valsa com Bashir é um filme extraordinário sobre as memórias de um soldado. Ele é o diretor do filme, Ari Folman, um israelense que lutou no Líbano nos anos 80. Uma noite um ex-companheiro de batalha o chama para contar um sonho que ele tem tido todas as noites: ele é perseguido por exatamente 26 cachorros raivosos que o encurralam até que ele acorda. Pesquisando em sua memória, eles chegam à lembrança do tempo em que o colega de Folman teve que matar os cachorros que serviam de sentinela nas vilas libanesas. Vinte e seis cachorros.

Folman, surpreso, descobre que não consegue se lembrar da guerra, apesar dele sempre ter uma imagem na cabeça: ele está nu, boiando no mar com outros companheiros. À sua frente, uma cidade destruída, vista sob a luz de iluminadores do exército. Folman decide entrevistar ex-companheiros do exército e especialistas para tentar recuperar suas próprias lembranças. O que teria realmente acontecido durante a guerra? Uma característica técnica transforma "Valsa com Bashir" em uma experiência ainda mais pungente do que a de assistir a um "simples" documentário. O filme é todo feito com animações estilizadas, acompanhadas pela música de Max Richter e desenhadas por David Polonsky. O recurso da animação é perfeito neste filme na tentativa de transmitir as memórias de forma visual, com todos os seus lapsos e fantasias. Lembra um pouco os filmes "Waking Life" (2001) e "O Homem Duplo" (2006), de Richard Linklater, que utilizavam a animação como forma de ilustrar os pensamentos dos personagens e/ou viagens causadas pelo uso de drogas.

Entrevistando outros ex-soldados, Folman vai tentando montar um quebra cabeça sobre os acontecimentos na guerra do Líbano, e as imagens variam de fantasias a relatos assustadores dos combates. Aos poucos, a imagem de um massacre ocorrido em Beirute vai tomando forma. Teria Folman presenciado algo traumático demais para se lembrar? Poucos filmes de guerra conseguiram ser tão eficientes em transmitir os horrores do campo de batalha como este. Uma guerra dificilmente é feita com os bombardeios "cirúrgicos" transmitidos pela CNN. Na vida real, pessoas são mortas sem motivo algum, crianças são usadas como soldados e inocentes massacrados sob o olhar aturdido de seus executores. Nesse mundo maniqueísta em que vivemos, em que sempre há um lado "certo" e outro "errado" em uma guerra, "Valsa com Bashir" mostra que todos são vítimas. Matar outro ser humano é algo que marca alguém queira sua causa seja "justa" ou não. Em grande parte das guerras, na verdade, os soldados não entendem o que estão fazendo ou sabem interpretar suas ordens. Folman aos poucos relembra o que aconteceu, e imagens de um terrível massacre causado por uma milícia católica surgem em sua mente. Não foi ele quem matou os civis inocentes, mas sua inação (e de seus companheiros) propiciou o massacre. É de se pensar quantas pessoas estão sendo mortas pelo mundo afora (e aqui no Brasil) simplesmente porque deixamos de fazer alguma coisa.
"Valsa com Bashir" era o favorito ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro este ano, mas acabou perdendo. Não importa. O que importa é saber que filmes inteligentes e desafiadores como este ainda são feitos. A realidade chega no final do filme na força de imagens reais, não mais em animação. A fantasia acabou, e o que vemos é sangue, corpos e morte.


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