Sempre que se faz uma adaptação de um livro ou HQ para cinema há quem diga que o material original era melhor. Que a forma escrita tem mais possibilidades de descrever os estados de alma dos personagens ou clarificar partes da trama que a tela do cinema não consegue. Quando o material original é uma HQ, a transcrição fica teoricamente mais fácil, pois o suporte original já é visual, quase um storyboard pronto para ser filmado. Ainda assim, quando se trata de uma graphic novel extensa e profunda como "Watchmen" (escrita por Alan Moore e desenhada por David Gibbons) , a contraparte cinematográfica pode sair prejudicada. O debate tem sua razão de ser, embora não seja muito útil. Livro é livro e filme é filme. O melhor, talvez, seja se aproximar da forma cinematográfica sem ter conhecimento do material original. Foi meu caso em Watchmen. Sem ter lido os quadrinhos, pude ver o filme sem preconceitos e de um ponto de vista puramente cinematográfico. O resultado foi um filme extremamente bem feito, profundo e até perturbador. Uma história de super-heróis de adultos para adultos, com quase três horas de duração, o que pode explicar a recepção morna nas bilheterias.
Watchmen é passado em uma versão alternativa de 1985. Os Estados Unidos, como na "vida real", estão em plena Guerra Fria contra a União Soviética, mas com mudanças importantes. Vigilantes fantasiados existiam desde o começo do século e tiveram papel crucial em momentos históricos como a II Guerra Mundial, a administração Kennedy e, principalmente, na Guerra do Vietnam que, neste mundo paralelo, foi vencida pelos EUA. A "arma" principal dos americanos existe na forma de um musculoso homem azul chamado Dr. Manhattan (em referência ao Projeto Manhattan, que criou a bomba atômica). Ele é o único super-herói com poderes reais, adquiridos durante um acidente com uma experiência nuclear na década de 1950. Quando o Dr. Manhattan interfere no Vietnam, como uma espécie de gigantesco "deus" que pulveriza o inimigo de forma fria e precisa, os vietnamitas se renderam. Mas, assim como a bomba atômica não garantiu a paz mundial, a existência do Dr. Manhattan (Billy Crudup) também não, e o mundo de 1985 está em vias de ser destruído por uma hecatombe nuclear. Os Vigilantes, declarados ilegais pelo presidente Nixon, estão assustados pelo assassinato do Comediante (Jeffrey Dean Morgan), um de seus principais membros. O enigmático Rorschach (Jackie Earle Haley) começa uma investigação que alerta os outros Watchmen, o "Coruja" (Patrick Wilson), Ozymandias (Matthew Goode) e Espectra (Malin Ackerman).
Lançada em 12 volumes entre os anos de 1986 e 1987, "Watchmen" foi uma das mais importantes graphic novels do gênero. Alan Moore partiu de influências como 1984, de George Orwell, e de toda uma mitologia pré-existente no mundo dos quadrinhos para criar um universo sombrio e profundo, em que os super-heróis também sofrem os problemas de todo ser humano de carne e osso. A adaptação cinematográfica levou longos anos para finalmente ver a luz do dia, passando por dezenas de diretores e roteiristas diferentes. Quando Zack Snyder lançou a fantástica adaptação de "300" para o cinema, seu nome foi escolhido para lidar com "Watchmen". O filme é um espetáculo não só visual mas sonoro. Uma seleção musical inspirada (coisa que os quadrinho não poderiam passar) dá nuances extras ao roteiro e é composta por canções como "The Times are A-Changing'", de Bob Dylan, "All Along the Watchtower", de Jimi Hendrix e "Hallelujah", de Leonard Coen. Questão de gosto pessoal, a escolha mais inspirada foi a da trilha de "Koyaanisqatsi", de Philip Glass, para as sequências passadas em Marte. A música "alienígena" de Glass se ajusta perfeitamente ao visual extra-terrestre do planeta vermelho, habitado apenas pela figura estilizada do Dr. Manhattan.
Mas seria Watchmen uma obra datada? Durante a sessão em que estive presente, testemunhei pelo menos três casais adolescentes abandonando o filme em diferentes momentos. Teria o público jovem repertório para acompanhar o que se passa na tela? Eles sabem quem foi Richard Nixon, ou mesmo quem ganhou a guerra do Vietnam? Darren Aronofski, um dos diretores cotados para dirigir o longa, era de opinião de que a trama deveria ser transportada para os tempos atuais e substituir o Vietnam pela guerra do Iraque. Seria, claro, um "sacrilégio" para os fãs da série original, mas talvez a frieza com que o filme foi recebido nas bilheterias possa ser explicada pela falta de identificação dos jovens de hoje com os temas do filme.
2 comentários:
Eu não vivi durante a Guerra do Vietnã. Em 1985 eu também era muito jovem pra acompanhar os acontecimentos políticos. Não é por isso que eu não curti Watchmen a HQ e o filme.
Se essa sua lógica se sustentasse, ninguém ia conseguir assistir Saving Private Ryan ou qualquer filme de segunda guerra - ou ainda pior: como que o público consegue gostar de filmes como Cruzada, 300, Tróia, já que eles são tão distantes?
Porque Watchmen é passado em um universos paralelo que depende muito do conhecimento de certos detalhes da História. Toda a abertura do filme é uma espécie de mini-documentário sobre vários momentos do século XX em que, sim, eu não havia nascido, mas do alto dos meus 37 anos eu já tenho vivência suficiente para reconhecer. A moçada que estuda jornalismo comigo, por exemplo, nem estava viva quando Collor venceu Lula.
Existe uma diferença entre ser um filme histórico (como Private Ryan ou Cruzada) ou um filme datado. Não estou dizendo que Watchmen seja datado, só estou levantando a questão, mas, repito, o clima de paranóia e de Guerra Fria que há nele vem de um momento específico da década de 1980, quando a HQ foi escrita, e que hoje não faz muito sentido.
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