A força e a honestidade das interpretações são as principais razões para se gostar de "Era uma vez...", novo filme de Breno Silveira, diretor de "Dois Filhos de Francisco". O elenco é encabeçado por Thiago Martins, que não é exatamente um desconhecido (já participou de "Cidade de Deus" e outras produções), mas os atores soam todos naturais. O filme é uma espécie de versão brasileira da história de "Romeu e Julieta". Nada muito novo ou original mas, repito, o trabalho soa "honesto" na interpretação de Thiago como Dé, um rapaz que mora da favela do Cantagalo, em pleno bairro nobre de Ipanema, a quatro quadras da Avenida Vieira Souto. Ele trabalha em um quiosque que vende cachorro-quente na praia, que fica em frente a um apartamento de luxo onde mora Nina (a estreante Vitória Frate, muito bem no papel), por quem ele é apaixonado. Do quiosque ele a vê à janela e fica imaginando como é a vida de quem tem dinheiro. Ele mora em um barraco com a mãe (Cyria Coentro), e tem uma vida difícil. Um irmão foi morto ainda quando criança por um traficante local e o outro, Carlão (Rocco Pitanga) foi preso pela polícia por engano.
Um dia Dé vê Nina tendo uma discussão com o namorado, que termina com ela. Chateada, ela vai se sentar em um banco em frente à praia e quase é assaltada, mas Dé a ajuda e a leva de volta ao apartamento. A partir daí eles passam a se encontrar na praia e a se aproximar. O clima de romance é bom e rende algumas das melhores cenas do filme. É verdade que não faz muito sentido que Dé largue o quiosque vazio por diversas vezes, mas o filme é um romance, não um documentário. No início Nina não sabe que Dé é pobre e mora no morro. Quando descobre, fica confusa e a relação fica complicada, mas ela volta a se aproximar do rapaz em um baile "funk" na favela. A geografia do Rio de Janeiro, com suas praias e seus morros, propiciou o surgimento de uma divisão social enorme e cruel, onde a distância entre ser pobre e miserável ou classe média alta é de algumas ruas. O morro é praticamente uma zona de guerra controlada por traficantes e criminosos que, às vezes, matam alguém simplesmente porque joga futebol melhor. Nina, quando sobe o morro, é chamada de "princesa" por todos e aparentemente não é uma moça preconceituosa, mas fica claro que ela e Dé são de mundos diferentes. Mesmo assim os dois iniciam um namoro que não é bem visto nem pela mãe de Dé nem pelo pai de Nina, Evandro (Paulo César Grande), um advogado que está com problemas financeiros. Ele fica sabendo do namoro da filha pelo porteiro do prédio. Enquanto isso, Carlão foge da prisão e Dé descobre que o irmão se transformou em um criminoso que planeja tomar o morro. Rocco Pitanga, carismático, está muito bem como um homem que, no fundo, era bom e honesto mas não conseguiu se manter assim. Ele quer transformar o morro em um lugar melhor para os moradores, mas isso envolve assassinatos e ligações perigosas com a polícia e traficantes rivais.
O filme, como disse, não é um documentário, mas toca em questões relevantes sobre a situação aparentemente desesperadora pelo qual passa o Rio de Janeiro. Consultei colegas cariocas sobre como é realmente viver na cidade e as respostas são variadas. Há quem diga que o Rio vive uma guerra civil sim e que a vida diária é afetada pela violência. Ao se procurar um lugar para morar, por exemplo, deve-se escolher um apartamento que não esteja voltado para a favela sob o risco de ser atingido por balas perdidas. Há tiroteios constantes e o "espetáculo" de ver balas traçantes cortando a noite lembra até cenas da Guerra do Iraque. Mas há quem diga que não é bem assim, que o clima de violência é exagerado pela mídia, principalmente a TV e os filmes, que pintam um Rio de Janeiro que não existe. O fato é que o abismo social existe e que milhares de pessoas convivem diariamente sob ameaça de morte. E que o descaso e preconceito prevalecem. Quando fui ver o filme, por exemplo, na fileira atrás de mim havia quatro adolescentes, típicas "patricinhas" universitárias, fazendo comentários sobre o trailer de "Linha de Passe", o novo filme de Walter Salles. Diziam que filme brasileiro "é tudo igual", e que "só mostram pobres". Por que elas estavam no cinema, então? E o cinema nacional recente é variado a ponto de ter filmes "globais" como "Se eu fosse você" ou alternativos como "O Cheiro do Ralo". O difícil é vencer o preconceito dos brasileiros com seu próprio cinema.
O final de "Era uma vez..." provocou certa polêmica, mas é o encerramento certo para o filme. A única ressalva é que a direção pecou um pouco no modo de conduzir este final, que é mal editado e um pouco confuso. Havia modos mais verossímeis de se criar o impasse que encerra o filme. "Era uma vez..." foi mal nas bilheterias, ficando bem longe do sucesso estrondoso de "Dois Filhos de Francisco", mas é um bom romance. E o Rio de Janeiro continua lindo...e complicado.
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