Li uma estatística uma vez que dizia que o stress das festas de final de ano é responsável por um aumento nas mortes por ataque cardíaco. Não sei se é verdade, mas me lembrei disso enquanto assistia a "Feliz Natal", filme de estréia na direção do ator Selton Mello, exibido dia 11 último no I Festival Paulínia de Cinema. Selton é sem dúvida uma das grandes figuras no cenário do cinema brasileiro recente, presente em filmes tão diferentes como "Lavoura Arcaica" e "O Cheiro do Ralo" como mais comerciais e leves como "O Auto da Compadecida" e "Lisbela e o Prisioneiro". Pode-se até dizer que ele sofre de certo excesso de exposição, a ponto de se tornar um pouco repetitivo. Nada melhor, então, do que passar para o lado de trás das câmeras e colocar o chapéu de diretor. Em "Feliz Natal", Selton também assina a produção, o roteiro (com Marcelo Vindicatto) e a edição do filme.
Não é um filme fácil. Selton poderia ter usado da própria fama para produzir um filme leve e divertido para atrair um grande público e agradar a todo mundo. Não é, definitivamente, o caso. "Feliz Natal" é "feio", "sujo", escuro e, por que não, polêmico. A fotografia de Lula Carvalho, além de super granulada, parece querer entrar na alma dos personagens através das lentes. Há alguns planos maravilhosos dos olhos injetados de Darlene Glória (a quem Selton Mello chamou de "minha musa, a alma do meu filme" antes da exibição em Paulínia) que valem o ingresso.
Leonardo Medeiros (perfeito) é Caio, o dono de um ferro velho no interior que volta para a cidade grande para rever a família durante as festas de Natal. A cunhada Fabiana (Graziella Moretto, em papel diferente de suas comédias habituais) o recebe dizendo que ele deixou muita mulher com o coração partido mundo afora (aparentemente, ela também). Sua mãe, Mércia (Darlene Glória, em atuação extraordinária) é um misto de amor de mãe com um "algo a mais" incômodo. O irmão Theo (Paulo Guarnieri, muito bem) não parece feliz em vê-lo e o pai (o grande Lúcio Mauro) diz para ele sumir da sua frente ou vai lhe partir a cara. Tudo isso apresentado em longos planos seqüência entrecortados por uma montagem que não segue o padrão clássico de plano/contraplano. Quando mãe e filho se encontram em frente a uma cortina de luzes, por exemplo, a edição entrecorta planos dos dois se falando com outros que os mostram se abraçando, gerando uma sensação de intimidade forçada, incômoda mesmo, para o espectador. Selton Mello também se mostra bom diretor em um encontro de Caio com a cunhada no banheiro. Nada é dito, vemos apenas o rosto dela em primeiro plano enquanto, em um espelho todo "sujo" com texturas, vemos o reflexo de Caio. Os dois apenas ficam lá, por um longo período, até que Caio pede licença e cruza a tela, deixando a cunhada do lado esquerdo do plano, agora invertido.
Selton Mello, grande fã do cinema nacional, europeu e do cinema americano marginal, claramente bebeu dessas fontes para criar sua versão de cinema. Os silêncios "europeus" de "Feliz Natal" por vezes são entrecortados por momentos mais "marginais" de humor, vindos principalmente das crianças (uma delas filho de Guarnieri; o outro menino, maravilhoso, infelizmente não peguei o nome). A (má?) influência da internet, por exemplo, rende momentos engraçados como quando os garotos vão procurar a definição de "menstruação" na web e a descrevem para os outros convidados da festa. E há a presença sutil de Tarantino em alguns diálogos trocados pelos amigos de infância que Caio vai visitar em sua passagem pela cidade.
Apesar desses momentos de humor, não é um filme para "se divertir". A hipocrisia da família moderna é mostrada de forma até cruel pela câmera "suja" de Mello. A Mércia de Darlene Glória é mostrada como uma senhora viciada em remédios e bebida. Lúcio Mauro se gaba de ter uma namorada com idade para ser sua neta, mas o "romance" tem que ser mantido à base de drogas para a potência. As crianças estão expostas a todo esse ambiente e as conseqüências são imprevisíveis. Caio está claramente tentando se reconciliar com problemas do passado, mas só encontra hostilidade ou, pior, piedade da família e amigos.
E há o final do filme. Claro que não vou entrar em detalhes aqui, pois não quero estragar o filme para ninguém. Só me limito a dizer que Selton cometeu uma ousadia final no roteiro que me deixou bastante dividido. Por um lado, a cena é forte o suficiente para ter arrancado, de uma mulher sentada atrás de mim no cinema, um "Não!" expontãneo e bem vindo (é raro tirar o público da letargia hoje). Por outro, eu me pergunto se ela era realmente necessária, ou se não teria sido uma apelação do roteiro. Para "compensar", há um plano final de absoluta paz que impressiona.
Um filme difícil, forte e impressionante. Não acho que vá agradar ao grande público. Para Selton Mello, é uma vitória artística e pessoal de alguém que já guardou seu lugar na história do cinema brasileiro como ator. "Estou nascendo de novo aqui hoje", disse ele antes da exibição do filme. "O flme se completa agora com o olhar de vocês". O olhar de muitos, ao final, era de espanto, confusão e admiração.
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