quinta-feira, 10 de abril de 2008

Pink Floyd - The Wall

Em 1977, o grupo inglês Pink Floyd estava em plena turnê mundial do disco "Animals", lançado recentemente. O letrista e baixista Roger Waters não estava gostando do show. A banda havia ficado famosa demais, as demandas técnicas muito específicas, o público cada vez mais barulhento e fanático. Um desses fãs estava na primeira fila gritando histericamente quando, de repente, Waters perdeu a paciência e cuspiu no rosto do rapaz. Ao sair do show, espantado com a própria atitude, Waters imaginou um conceito tão ousado quanto inédito: para representar a sensação de separação entre a banda e o público, Waters imaginou um grande muro em frente ao palco, encobrindo toda a visão da platéia. Alguns anos depois, em 1979, era lançado o disco duplo "The Wall", uma das maiores conquistas artísticas do grupo, e também um dos responsáveis pela extinção da banda em sua formação mais tradicional (este é um assunto para mais tarde). Os shows ao vivo do disco eram dos mais teatrais já imaginados no rock. Conforme as músicas iam sendo tocadas, assistentes de palco iam montando um gigantesco muro branco que ia crescendo, tijolo a tijolo, escondendo a banda do público. No meio do show o último tijolo era inserido e o isolamento da banda (e do personagem principal do disco) estava completo. O muro branco então era usado como uma tela de cinema onde eram projetadas animações produzidas pelo chargista Gerald Scarfe. O muro literalmente vinha abaixo ao final de cada show enquanto a banda, protegida por uma grade, continuava tocando sob a chuva de tijolos que caia.
O diretor Alan Parker foi convidado a dirigir a versão cinematográfica do roteiro criado por Waters enquanto Gerald Scarfe produziria seqüências animadas para completar o filme. Lançado em 1982, "Pink Floyd - The Wall" era um filme à frente do seu tempo. Antes da MTV e da era dos videoclipes, Parker e Scarfe criaram um espetáculo audiovisual para ilustrar a música perfeccionista do Pink Floyd e os conceitos fortes de Waters. Já vi o filme diversas vezes e tive a oportunidade de revê-lo no "Cine Paradiso", um tradicional cineclube que fica no centro de Campinas e que tem resistido às ameaças de fechamento há anos.



“The Wall” fala sobre um rock star chamado “Pink” (interpretado pelo músico Bob Geldof), que já está cheio. Ele não agüenta mais os shows, a vida em hotéis, as orgias nos bastidores, as drogas, as mulheres, tudo. O filme o mostra trancado dentro de um quarto de hotel em Los Angeles gradualmente perdendo a razão enquanto acompanhamos sua trajetória em flash backs. O personagem “Pink” é baseado em duas pessoas. Uma, obviamente, é o próprio Roger Waters, que não conheceu o pai morto na II Guerra Mundial. O outro é o fundador do Pink Floyd, Syd Barrett, que não agüentou a pressão do sucesso inicial da banda e, afundado em drogas, se retirou da cena artística no final dos anos 60. Barrett acabaria morrendo aos 60 anos na casa da família, onde se manteve recluso e se tornou uma figura “cult” no mundo do rock. Os flash backs de Alan Parker recriam a morte do pai de Pink na II Guerra em uma seqüência no início do filme que é revisitada várias vezes. Acompanhamos também a infância dele na Inglaterra, crescendo com uma mãe castradora e sofrendo abusos na escola. A seqüência do professor em “Another Brick in the Wall part 2” é a mais conhecida da produção, e a música chegou ao número um tanto na Inglaterra quando nos Estados Unidos na virada dos anos 70 para os 80. O refrão “we don´t need no education” se tornou um slogan em várias partes do mundo, e é freqüentemente mal compreendido. Antes que um protesto contra a educação, era um protesto contra o rigoroso método educacional inglês, que ainda permitia que os professores batessem nos alunos quando “necessário” e era contra qualquer tipo de criatividade. A música se transforma em uma seqüência fantástica em que o pequeno Pink imagina a escola como um labirinto de ratos, em que todos os alunos têm o mesmo rosto e marcham como soldados para um moedor de carne. O solo final do guitarrista David Gilmour é dos mais simples e perfeitos da história do rock.
“The Wall” deixaria Freud orgulhoso. Vemos como as experiências sofridas pelo jovem Pink acabam afetando sua vida como adulto bem sucedido financeiramente, mas um desastre pessoalmente. Há uma seqüência em que vemos o garoto interessado na vizinha que troca de roupa na casa ao lado, enquanto em uma montagem paralela vemos Pink adulto ignorando a bela esposa que tenta chamar sua atenção. Cada experiência destas é representada por mais um tijolo em um muro psicológico que o personagem vai construindo ao redor de si mesmo. É curioso também, para quem conhece a história da banda, ver como o personagem de “Pink” vai se tornando cada vez mais parecido com a personalidade difícil e autoritária de Roger Waters, conhecido por querer tudo absolutamente à sua maneira e por maltratar os parceiros de banda David Gilmour (guitarra e vocais), Richard Wright (teclado) e Nick Mason (bateria). Wright foi uma das vítimas do abuso e saiu da banda ainda durante as gravações do disco. Anos depois ele diria que não conseguia entender o conceito de distância dos fãs (é fato também que ele sofria de abuso de cocaína na mesma época). Mason se tornou um músico de estúdio e apenas David Gilmour (que mais tarde reformaria o Pink Floyd à sua maneira) oferecia algum tipo de resistência ao domínio de Waters e deu contribuições artísticas inegáveis. Gilmour foi o diretor musical do álbum e o produtor da gravação para o filme. Também compôs as faixas “Young Lust”, “Run like Hell” e “Comfortably Numb”, um ponto chave do filme: os empresários de Pink invadem o quarto destruído e o encontram desacordado, ferido e com as sobrancelhas raspadas. Um médico dá uma injeção em Pink que, com um grito de dor, acorda e é levado dopado para apresentar seu show.
É então que Pink se imagina como um ditador, e seu show vira uma espécie de comício fascista. Ele vê os fãs apenas como um bando de seguidores fanáticos e começa a fazer uma seleção racista em que judeus, negros e homossexuais são retirados à força por seus capangas e levados para o “muro”. Há quem diga que Waters levou seus medos e paranóias um pouco longe demais e que a analogia entre um concerto de rock e um comício nazista seria, no mínimo, imprópria. De qualquer forma, a cena é assustadora e fascinante, e o diretor Alan Parker diria depois que ele teve problemas em controlar a multidão de figurantes ensandecidos, muitos deles “skinheads” de verdade que não sabiam a diferença entre fantasia e realidade.
O final é composto pela animação sarcástica de Scarfe e é passado em um tribunal imaginário dentro da mente perturbada de Pink. Lá ele é julgado diante de um juiz concebido por Scarfe como um grande traseiro que literalmente fala pelo ânus. Pink escuta depoimentos dados por seu antigo professor do colégio, por sua mãe superprotetora e pela ex-esposa. Pink é considerado culpado e sentenciado ao pior dos pesadelos: ser exposto diante do mundo sem a proteção do muro que foi construindo durante a vida. No show ao vivo era o momento em que o muro vinha abaixo diante da platéia. No filme, Parker mostra o muro explodindo violentamente, tijolos voando em câmera lenta, enquanto se escuta o grito de dor de Pink.
Vinte e seis anos depois, o filme ainda resiste ao tempo e é freqüentemente estudado em escolas. A mensagem anti bélica está mais atual do que nunca e, apesar dos avanços visuais no cinema, The Wall permanece uma grande obra artística. Quanto à mensagem de Waters contra a desumanização dos concertos de rock e de ter repetido continuamente ser contra os shows em grandes estádios, ele continuou contraditório como sempre. Enquanto seus desafetos David Gilmour e Richard Wright vêm se apresentando em lugares menores e apresentando shows cada vez mais intimistas, Waters tem feito grandes turnês mundiais em que se apresenta para platéias em estádios lotados (como no Morumbi em São Paulo, ano passado). Não importa. Sua contribuição para o rock está garantida.

3 comentários:

Anônimo disse...

E ae João!

Meu, considero o Pink Floyd a melhor banda da história da música, e principalmente do rock, exatamente por seu perfeccionismo. Em suas músicas tudo é extremamente preciso. Não importa se é uma baladinha ou a mais psicodélica que possamos imaginar. Tudo é perfeição.

Sinceramente desconhecia esse fato que acabou originando o The Wall. Por aí já se tem uma idéia da capacidade de criação artística dos caras. E por falar em capacidade artística, cabe lembrar que foi o Pink Floyd a primeira banda na história da música a utilizar projeção de imagens no palco.

E olha, Animals também é do c...

Abç e parabéns pelo artigo!

Mauricio Santaliestra, da vizinha Indaiatuba.

João Solimeo disse...

Então, Maurício, os caras são bons mesmo, né? Também gosto muito de "Animals", que não é um disco muito conhecido deles.
Quanto às luzes, há quem diga que o Velvet Underground, nos EUA, começou a usar primeiro, mas foi tudo na mesma época, nos anos 60. E o Pink Floyd sem dúvida levou o conceito, como sempre, à perfeição.

Abraço.

bobmor disse...

João,
Parabéns pelo texto, conseguiste sintetizar muito bem o enredo do filme (e poucos conseguem). Devo ter assistido seguramente mais de 20 vezes o filme, mas quando trata-se de colocar no papel torna-se complicado, mais ainda para explicar para um leigo. Eu não teria correção alguma a fazer ao teu texto. Abraço do companheiro de pinkfloydlist.