Philip Glass é o primeiro a admitir que sua música é “radical”. O compositor de trilhas como o experimental “Koyaanisqatsi” ou filmes mais acessíveis como “As Horas” completou 70 anos o ano passado, mas em momento algum aparenta a idade, seja fisicamente ou nas respostas que dá para a câmera. O documentário é “Glass: Retrato em 12 partes” (Glass: A Portrait of Philip in Twelve Parts), do australiano Scott Hicks, que assisti ontem no Festival Internacional de Documentários “É tudo verdade”, em São Paulo. Glass fez parte de um movimento cultural em Nova York nos anos 60, época da chamada “contra cultura” e que gerou uma revolução nas artes. Garoto prodígio, entrou na universidade aos 15 anos e, após se formar em três anos, foi parar na prestigiada escola Julliard, em Nova York, onde estudou música. Atraído pela música oriental, foi à Índia onde serviu de assistente para Ravi Shankar e transcreveu sua música para a notação ocidental. Shankar se tornaria mundialmente famoso depois, quando os Beatles também foram à Índia atrás de inspiração, e se tornou professor de George Harrison. Glass voltou à Nova York e enquanto trabalhava como motorista de táxi e encanador começou a compor material próprio. Formou então o “Philip Glass Ensemble”, um grupo de músicos com quem praticava suas composições e que, a princípio, fazia sucesso entre os jovens “chapados” que iam assistir suas apresentações. Glass circulava no grupo de artistas que incluía Allen Ginsberg, Chuck Close e Brian Wilson. Com Wilson veio a revolucionária ópera “Einstein on the Beach”, que mesmo atraindo multidões não lhe rendeu o suficiente para parar de dirigir táxis para sobreviver. Sua música não convencional, baseada em uma série de repetições incessantes, causava horror aos acadêmicos tradicionais e espantava parte do público mas, trabalhador incansável, Glass foi aos poucos conquistando seu espaço. Hoje Glass é dos mais renomados compositores do mundo, com uma vasta obra que contém trilhas para cinema e teatro, óperas, sinfonias, concertos e parcerias com roqueiros como David Bowie ou o grupo experimental brasileiro “Uakti”.
O documentário é dividido em doze partes e o diretor teve acesso à rotina do compositor por 18 meses, acompanhando-o em momentos tanto de trabalho quanto familiares. Com vários casamentos, Glass divide a vida com a jovem esposa atual e três filhos pequenos, com quem brinca antes de começar a trabalhar. Ele está trabalhando na Sinfonia nº 8, mas está com problemas: “Não sei em que movimento estou trabalhando...acho que esta sinfonia está ao contrário”. Ele toca algumas notas no piano e pergunta diretamente ao diretor do filme se ele entendeu a idéia. “Eu mesmo não entendo às vezes”, diz ele. “Freqüentemente só consigo entender do que se trata muito perto do final. É como uma pescaria... você coloca o anzol na água e fica esperando. De repente você sente um puxão. Mas isso só acontece se você estiver lá esperando”. Apesar da fama e da obra, Glass se revela extremamente acessível e pronto para dividir com a platéia seus segredos. “Tenho só um segredo”, diz ele, “que é acordar de manhã e trabalhar o dia todo”. De fato, no momento do documentário, Glass estava compondo a trilha de três filmes diferentes, além da sinfonia. Vemos entrevistas com Martin Scorsese, para quem compôs “Kundun”, o documentarista Errol Morris (Névoas da Guerra), Woody Allen (Cassandra´s Dream) e Godfrey Reggio, com quem fez a trilogia Koyaanisqatsi, Powaqqatsi e Naqoyqatsi. Várias vezes Glass está filosofando sobre algum assunto para a câmera quando pára e pergunta para o diretor “O que você acha disso, Scott? O que você faria nessa situação?”.
Vemos também o lado espiritual do compositor, que declara não seguir nenhuma religião específica. No entanto, sua vocação budista é grande. Glass é vegetariano, pratica meditação e ginástica com um taoísta e recebe orientação espiritual de um monge budista. É defensor das causas do Tibete e já se encontrou com o Dalai Lama (que riu abertamente de Glass quando este tentou cumprimentá-lo com o que achou ser uma frase tradicional tibetana). Se isso está servindo para o espírito de Glass ou não é discutível, mas certamente está ajudando sua forma física. É difícil acreditar que aquela pessoa já seja um “senhor” de 70 anos. Glass diz que pretende compor muita coisa ainda, então precisa se manter.
Sua música é classificada como “minimalista”, mas ele não gosta do rótulo. A melhor descrição seria música “repetitiva” mesmo, como em um mantra composto por algumas notas que vão se repetindo e repetindo formando uma textura sonora. O som pode soar estranho para quem não conhece, mas é preciso certa paciência para absorver a música de Glass. Recomendo o disco “Glassworks”, ou então “Passages”, grande parceria de Philip Glass com Ravi Shankar, para começar. Há também “The Photographer”, ou as trilhas para “Mishima”, “Truman Show” e “As Horas”. “Koyaanisqatsi” e “Powaqqatsi” se encontram em DVD por preços bastante acessíveis hoje em dia, e têm a vantagem de serem belos filmes inteiramente visuais, sem diálogos, para conhecer a música.
Veja aqui entrevista com Philip Glass e o diretor Scott Hicks a respeito do filme.
Glassworks, piano: Branca Parlic